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Há um cerrar os dentes e seguir em frente na poesia da colombiana María Mercedes Carranza (1945-2003) quando fala do amor e do seu fim. Para transmitir a desolação e desamparo de um amor que acabou, a poetisa encontra a linguagem seca e sem adornos que transmite a força dos factos e a necessidade de os enfrentar. Sem subterfúgios ou circunlóquios, na lanhesa do verso surge a força da vontade de continuar a vida para além dos desencantos amorosos, seja no poema Ode ao amor ou no poema Acontece Acontecer que escolhi traduzir para o ilustrar.

 

 

Ode ao Amor

 

Uma tarde que jamais esquecerás 

chega a tua casa e senta-se à mesa. 

Pouco a pouco terá um lugar em cada divisão, 

nas paredes e nos móveis estarão as suas marcas,

desfazer-te-á a cama, amachurará a almofada.

Os livros da biblioteca, precioso tecido de anos,

acomodar-se-ão ao seu gosto e semelhança, 

mudarão de lugar as fotos antigas.

Outros olhos observarão os teus hábitos, 

o teu e vir entre paredes e abraços 

e serão diferentes os ruídos quotidianos e os cheiros.

Certa tarde que jamais esquecerás 

o que estragou tua casa e habitou tuas coisas 

sairá pela porta sem dizer adeus.

Deverás começar a fazer de novo a casa,

reacomodar os móveis, limpar as paredes,

mudar as fechaduras, rasgar retratos,

varrer tudo isso e seguir vivendo.

 

 

Acontece acontecer

 

Depois de alguns anos

de não o ver,

de novo nos encontrámos.

Não o desejo, como antes,

mas a nostalgia

daqueles dias de desejo

nos levou à cama.

A alegria de então

foi ternura, e o gozo

e a voluptuosidade

só complacência.

Ambos, poderia jurá-lo,

tivemos a certeza

de havermos sobrevivido.

 

Traduções de Carlos Mendonça Lopes a partir dos originais incluídos em Antología, La poesía del sigilo XX en Colombia, Visor Libros, Madrid, 2006.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Colin Self (1941), Two waiting women and B52 nuclear bomber, 1963, de colecção partícular.

Numa associação simbólica da pintura na imagem de abertura com os poemas traduzidos, encontramos à esquerda a mulher que, saída do desmoronamento amoroso, medita no que lhe sucedeu, qual bombardeamento nuclear simbolicamente transmitido pelo aparecer do avião bombardeiro no canto superior esquerdo da pintura, e à direita a nova mulher, segura de si, que. de frente e olhando ligeiramente para o lado, para o seu anterior eu, talvez, segue o caminho sem desfalecer.