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Transcrevo hoje o poema Sentimento dum Acidental de Armando Silva Carvalho (1938-2017). Num quadro de fado e turistas na Lisboa típica dos bairros populares, derrama o poeta o acre da sua reflexão sobre os homens e o mundo em redor, de alguma forma o que amiúde encontramos na sua poesia.

 

 

Sentimento dum Acidental

 

A noite lançava-se na última viagem.

Já bebida, a velha profissional 

engana-se nas redondilhas 

de um mouraria antigo

e o gestor turístico 

no seu azul e brilhante 

fato alpacatado

dentro do qual rebenta

solta no ar a praga impiedosa.

 

Amores de mãe tremiam 

na garganta vagarosa 

rescaldos de uma guerra erótica 

eram os mitos forçados 

do consumo.

 

Casais obesos descansavam nas mesas 

a digestão pesada, a paz 

tão transitória dos sentidos. 

Solerte ofício este de jogar na voz 

todas as noites, a fatalidade,

sob o olhar frio dos deuses 

tão mesquinhos.

As palavras amargas poderão ter 

a força duma chaga,

a cor nocturna da faca pitoresca, 

e a velha cantadeira 

pode deixar cair da boca 

as aves mortas que esconde no seu peito.

Porque eu não esqueço.

Ali, quando a noite arregaçava 

os braços no trabalho de parto indiferente,

sob as cinzas sujas da memória,

outro fado nascia abruptamente 

oculto e humilhado à luz do dia.

 

Poema publicado em Sentimento de um Acidental (1981), transcrito de O Que Foi Passado A Limpo, Obra Poética, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Malhoa (1855-1933), Fado, de 1910. O quadro pertence à colecção do Museu da Cidade em Lisboa.