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Tag Archives: Maria Helena Vieira da Silva

Poemas de Alberto de Lacerda

28 Terça-feira Jul 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

≈ 2 comentários

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Alberto de Lacerda, Maria Helena Vieira da Silva

Apesar de tudo há um caso de amor

Entre mim e a vida

1958

in Palácio

 

*

A beleza é um oceano

Aonde o olhar se perde

E regressa

Transfigurado

Londres, 16 de Junho 99

in Horizonte

 

Eros

O meu olhar descia como um íman

Ao centro mais ardente do teu corpo

22.5.62

in Exílio

 

Ao ler os poemas de Alberto de Lacerda (1928-2007), deparamo-nos com uma poesia requintada, progressivamente depurada na forma, onde a adjectivação é contida, atravessada por uma constante densidade intelectual. Por vezes a emoção irrompe neste dizer poético, mas é sobretudo a justeza verbal da observação na matéria de poesia que atrai, perfeito trabalho sobre a língua tornada poesia, e os curtos poemas citados a abrir são exemplo.

Para falar desta poesia sigo o desejo expresso do poeta: “… Que os meus poemas fossem um comércio amoroso. Ao longo do tempo. Dos tempos. Livres do meu rosto. Do meu corpo. Do amor sem explicação e sem limite que os fez nascer a todos, … Livres da minha passagem pela terra. Do meu nome. Isentos de biografia.

                                                                                    Londres. Fev. de 1964.”

in Oferenda II

 

E no poema Cântico espraia o seu propósito:

 

Cântico

Não consentir a fórmula

Não produzir nenhuma 

Nunca pisar os calos

Não desmanchar a cama

Dos sonhos necessários

Não lançar mais tinta

Sobre a mesma tela

Volvidos tantos anos —

Não deixar de beber

O vinho da esperança

Dizer dizer tudo

Dizer quase tudo

Em palavras sem jaça

E um amor sem limites

Por todos por tudo

1.9.63

in Cor: Azul

 

A fechar as duas colecções de livros de poesia, Oferenda I e II, encontra-se uma extensa citação de Bertrand Russell, funcionando esta como retrato desejado do poeta, e da qual retiro este fragmento:

“Três paixões, simples mas infinitamente poderosas, têm governado a minha vida: o desejo do amor, a busca do conhecimento, e uma compaixão esmagadora pelos sofrimentos da humanidade. …”

Bertrand Russell

 

Na digressão prolongada pela poesia de Alberto Lacerda que segue, os detalhes de biografia ficam ausentes, alargando o horizonte de uma poesia de reflexão entre o eu e o mundo. Serão sobretudo poemas do Eu que transcreverei. De fora ficam extensos poemas/comentário sobre relevantes acontecimentos do século XX que o poeta viveu ou de que teve notícia.

 

Janela

Sou uma janela onde se debruçam

todas as coisas da vida.

Não sobre mim: sobre a vida

que passa pelo meu ser

 

E tudo é longe

e aqui.

 

Ser poeta é não pertencer

nem a si.

in 77 Poemas

 

 

No Corpo

Matéria de poemas? Nunca, nunca!

Tivesse eu a resposta dos teus olhos

Continuação dos meus — essa a poesia

Que eu busco desde o vértice do mundo

Esse o tufão glorioso que varresse

As míseras palavras

O sofrimento atroz

 

Matéria de poemas? Sim, cantando

Dois corpos a entrega luminosa

Na afirmação cumprida da existência —

Então, palavras

São triunfos, são Ícaros sem queda

Necessidade linda da nudez

Não míseros silêncios ruidosos

Mas música das esferas

20-11-1965

in Oferenda II

 

 

A um Deus desconhecido

Estou à espera do sol

Que há-de passar de novo

Nesta varanda

 

As raparigas de bronze lânguido

Da minha infância

Continuam a passar nesta varanda

Mesmo quando as não vejo

 

O sol

O sol há-de surgir

Os dez raios de oiro

Das tuas mãos desconhecidas

 

Como te chamas?

23-2-1965

in Oferenda II

 

 

*

Chove lá fora como terá chovido

muitas vezes — no céu da minha infância.

Tão poucas as lembranças que nos ficam

da beleza imortal que foi de outrora!

…

15.10.45

do poema Véu

in 77 Poemas

 

Depois desta busca poética de si, vamos ao encontro do outro:

 

*

Seguias tu pela estrada

e eu seguia plo carreiro:

tão fácil, movimentada;

eu, tão tardo caminheiro.

 

Os pés à vista de ti

inda mais se me toldavam;

se andava junto ou sem ti

meus sentidos ignoravam.

 

Ainda sou caminheiro

ainda vais pela estrada:

sempre mais lento o carreiro,

e tu mais longe na estrada.

21.7.45

in 77 Poemas

 

 

A festa recusada

E nasce entre clarins amachucados

O desejo de nunca mais ouvir

O som de bosques puros deslumbrados

Que os deuses não nos deixam descobrir

 

E nasce aquele som viril e brando

Da minha voz estranha que te despe

Da minha voz ardente imaginando

O amor que passou e que não deste

 

E nasce entre cilícios da orquestra

No soluço mais puro e mais oculto

A presença abolida de outra festa

Que fora prometida no teu vulto

 

A festa recusada que tornara

Os dois um rosto só medalha rara

5.11.62

in Exílio

 

 

*

…

Os dias sem ti

São redes que os séculos esticam 

De ansiedade

 

Dias sem ti

Sem o tocar das tuas mãos

Sem os teus lábios sobre 

Os meus lábios súplices

Sem a tua voz que modula

A exactidão serena

De dois corpos contidos

Num só olhar

Boston, 25 de Setembro 90

de poema s/título in Átrio

 

 

A tua ausência

A tua ausência resume

Como um grito a minha vida.

Sou tu, ao longe —

Até quando?

 

Sou ausência, a tua ausência.

Fiquei deserto de mim.

 

Sou dois olhos marejados

Cravados no horizonte.

3.10.62

in Exílio

 

 

*

Para ficar o universo

Equilibrado de novo

Para que a terra não fosse

Aos poucos arrefecendo

Teu rosto junto a meu rosto

Tudo o mais a esse ritmo

Simplesmente obedecendo

28-2-1965

in Oferenda II

 

 

*

E agora tomba-me a cabeça

Sobre o lado da solidão

…

4.11.62

do poema Declive, in Exílio

 

 

Amor perfeito

Não há

Nunca houve

 

Centenas

Num canteiro

Que contemplo

Surpreendido e distante

Londres, 5 de Junho 97

in Horizonte

 

 

De um soneto dos dezanove anos

Sonhou-te o meu amor. Nunca vieste!

De tanto te sonhar meu coração

decerto já em sonho os conheceste.

 

Não nos pertence a nossa inquietação!

Vem quebrar o encanto em que viveste

tantos anos na minha solidão!

in 77 Poemas

 

 

*

No sol que a pouco e pouco declinando

Irá meus sonhos transportar à noite

Revejo em fuga aquele esplendor de quando

O trigo se alternava com a foice.

 

Era a imagem de uma tarde infinda,

Redoma aberta de uma luz doirada.

Certos amigos não tinham ainda

Desaparecido ao voltar da estrada.

 

Ficou esse horizonte na lembrança,

Linha a perder de vista no olhar.

E é este o sol, o mesmo, na mudança,

E é este o trigo, a foice, e à noite, o luar.

 

O amor, a própria morte nos aumenta

Sua luz obscura — que nos alimenta.

Yêvre-le-chatel, 25 de junho 90

in Átrio

 

 

Para encerrar, um vislumbre da carga erótica que por vezes surge neste poemário:

 

*

Eu busco a maravilha duma outra nudez

Que os deuses partilham com certos mortais

1958

in Palácio

 

 

*

Há dias em que sou um corpo que pegou fogo

E ficou todo

Em ferida

Outubro de 64

in Oferenda II

 

 

*

Deixa navegar no silêncio

A alegria das nossas cinturas

12-6-1964

in Oferenda II

 

 

J.

O ritmo o ritmo intacto desse corpo

A graça enxuta dos gestos desse corpo

E a luz que emana quando as nossas noites

Se encontram se entregam se confundem:

Beijos estrelas vendavais e praias

in Palácio

 

 

O livro SONETOS, edição do Autor em Veneza no ano de 1991, merece uma referência autónoma, tanto pela unidade formal — são 147 sonetos, como pela unidade temática. Relato explícito de paixão/paixões homossexuais, onde a exaltação da posse, a angústia da ausência ou da perda se espraiam, o conjunto dos sonetos, revelando a mestria oficinal do poeta, apenas em alguns falha no apuro estético que toda a sua obra revela. Provavelmente o canto poético da homosexualidade já estava presente nos últimos quatro poemas transcritos, mas neste livro ela surge explícita e assumida.

Transcrevo apenas dois sonetos do livro dando conta de momentos de uma paixão: o encontro, e a sua memória. 

 

Soneto 40

Mas onde fica o teu dizer ardente

Onde a palavra não formule mais

Do que a curva da anca adolescente,

Filho dos deuses e dos animais?

 

O teu dizer ardente: o ar em arco

Reteso, duplo, sobre o peso duplo

Dos nossos braços: busco essa palavra

Que o teu corpo segreda quando nu

 

Se transforma no meu e eu me transformo

Na poesia do mundo que sonhaste

Pôr em verso. Silêncio. Não há forma.

Há essa maravilha que fixaste

 

Somente no que és e não consente

Que o saibas, meu amor, inteiramente

Lisboa

8 Agosto 70

 

 

Soneto 92

De noite, era de noite que chegavam

Teus lábios como versos que mordiam

Minha contemplação febril e casta.

De noite, era de noite que eu morria

 

Quando subitamente me surgias

E a casa por completo transformavas

E foi de noite anos depois no estio

Que em Lisboa nos fomos desvelar,

 

Nu contra nu, a assombração inteira,

Terramoto dos astros na cidade,

Simplicidade humana derradeira,

Mistério de presença e já saudade,

 

De que nem homem nem mulher nenhuma

Dividirá a maravilha una

Londres

14 de Junho 72

 

 

Vai longa a viagem, terminemos com este Impromptu:

 

Impromptu

E assim te foste, luz de vaga-lume,

feita de segredo e brevidade.

Impossível definir aquele perfume

que o teu surgir me trouxe nessa tarde.

in 77 Poemas

 

 

Nota bibliográfica

Alberto de Lacerda, Oferenda I, INCM, Lisboa, 1984. Contém os livros

Alberto de Lacerda, Sonetos, capa de Vieira da Silva, edição do autor, Veneza, 1991.

Alberto de Lacerda, Oferenda II, INCM, Lisboa, 1994.

Alberto de Lacerda, Átrio , INCM, Lisboa, 1997.

Alberto de Lacerda, Horizonte, INCM, Lisboa, 2001.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), Le jeu de cartes (1937), de quem o poeta foi amigo, e por vezes dedicatária de poemas:

…

Irmã de Camões

Maravilha fatal 

Da nossa idade

Redentora heróica

Duma raça triste

Ó majestosa

Senhora guardando

Nossa glória alta

O troféu de luz

O deslumbramento

Que mais nos faltava

No século negro

Ó guarda serena

Dum monumental

Trágico e sublime

Segredo que esplende

Para toda a parte

Como o sol que brilha

Apesar de tudo

Na tua pátria o mundo

E em Portugal

Lisboa, 8.11.61

do poema Homenagem a Maria Helena Vieira da Silva

 

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O cheiro de Lisboa e poesia popular a Santo António

14 Domingo Jun 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

≈ 5 comentários

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Augusto Gil, Francisco Xavier da Silva, J. Leite de Vasconcelos, Maria Helena Vieira da Silva

Regressei, e não consigo dizer com a canção popular: Cheira bem, cheira a Lisboa. Lisboa cheira a tristeza. Nem o sol que por vezes surge a consegue dissolver. Tempo de festa pelos Santos Populares era este, e nestes dias a festa está ausente. Aquela alegria espontânea que se apossava de nós sem razão aparente, apenas por circular entre a multidão disponível e alegre, desapareceu. Estão aí as músicas que faziam o pano de fundo das festas; e a memória de as ter vivido. São apenas um pálido arremedo da sua alegria, que voltará, espero.

Se pelo país a devoção a cada um dos santos populares: S. António, S. João, e S. Pedro, é variável, e cada povoação tem o seu preferido, em Lisboa, Santo António tem a primazia. Santo brejeiro na imagem popular, a ele se associa a alegria que por estes dias invadia a cidade:

 

Ó meu Santo galhofeiro,

Ó meu Santo brincalhão,

Descei do vosso poleiro,

Vinde ouvir minha canção…

 

Comia-se, bebia-se, e amores efémeros ou duradouros começavam. Seja ou não a tradição o que era, é facto que a alegria associada às festas de Santo António tem continuado, adaptando-se às peculiaridades do tempo que passa, e este ano não foi excepção. À espera que a alegria partilhada nas ruas esteja de regresso no próximo ano, continuemos esta digressão por poesia de recorte popular.

A invocação ao Santo citada antes, é o início de um poema do século XIX, O Casamenteiro. Foi escrito por Francisco Xavier da Silva (1832-????) em véspera de Santo António, no ano de 1867(1), e é retrato de um sentir profundamente enraizado que associa a imagem de António a casamentos felizes:

…

Tu ó Santo milagroso 

Atende seus requerimentos,

Faz este povo ditoso;

Decreta mil casamentos…

…

 

Os riscos da vida urbana fizeram desaparecer as fogueiras de Santo António onde se queimava alecrim, perfumando a noite, e nós, moços, numa inebriante alegria, saltávamos, na emulação de ver quem cobria a fogueira mais alta. O baile fazia-se na sua proximidade, numa partilha socialmente indistinta:

…

Aqui em torno à fogueira,

Santo de tantos primores,

Vem a cachopa altaneira 

Dançar com os seus amores…

 

Vem da cidade o janota,

Vem da montanha o lapónio,

Reina o prazer, a risota,

Seu patrono é Santo António.

…

 

Além de evocar tradições enraizadas nas festas de Santo António, o poema sublinha também, a terminar, a faceta brejeira que a crença popular associa ao santo:

…

Mancebos  beijai-lhe o manto

António é vosso rival!

 

Ele às donzelas quer tanto…

Mas não julguem que é por mal…

Quebra as bilhas por encanto…

Manda-as ir ao roseiral…

 

Estes versos ecoam uma quadra popular recolhida por  J. Leite de Vasconcelos (2) que dá também ela conta de comportamentos do santo, não tão santos assim:

 

Santo António, com ser santo, 

Também teve os seus amores;

Quando os santinhos namoram, 

Que farão os pecadores?

 

ou está outra:

 

Santo António, por ser santo

Não deixa de ser velhaco:

Levou as moças à fonte,

Levou duas, trouxe quatro!

 

Outras quadras populares alusivas ao santo há, e transcrevo desta recolha mais duas que referem amores e casamentos, a primeira com a novidades de pedir marido rico, a segunda pede protecção e sublinha a capacidade de o santo fazer milagres de amor:

 

*

Ó meu rico Santo António,

Meu santo casamenteiro,

Dai-me vós um bom marido,

Que tenha muito dinheiro.

 

*

O Santo António é bom santo,

Pois faz milagres de amor;

Hei-de a ele ir confessar-me

E há-de ser meu protector.

 

O mesmo Francisco Xavier da Silva, autor do poema de início, publicou em 1871 uma colecção de cantigas populares (3), na qual recolho estas quadras a Santo António, onde a mesma imagem do santo casamenteiro transparece:

 

*

Casai-me meu Santo António 

já que és tão milagreiro, 

conhecido em toda a parte 

como bom casamenteiro.

 

*

Vou rezar um padre nosso 

ao meu rico Santo António 

para que me case cedo 

e me livre do demónio.

 

*

Ó meu rico Santo António

rogai ao vosso menino 

que faça mudar depressa 

Este meu cruel destino. 

 

Numa abordagem diferente da cumplicidade entre o santo e Jesus referida na quadra anterior, Augusto Gil (1873-1929), num poema há décadas assimilado pela memória popular, O Passeio de Santo António, retrata além de uma simpática bonomia, imagem de marca do santo, uma atitude tolerante de António relativamente a comportamentos que a igreja condenava, protegendo e desviando a atenção do menino Jesus (a igreja) das manifestações amorosas do par entrevisto:

 

Augusto Gil — O Passeio de Santo António 

 

Saíra Sto. António do convento 

a dar o seu passeio costumado, 

e a repetir num tom pesado e lento 

um cândido sermão sobre o pecado. 

 

Andando, andando sempre, repetia 

o divino sermão, piedoso e brando, 

e nem notou que a tarde esmorecia, 

que vinha a noite plácida baixando. 

 

E andando, andando, viu-se num outeiro

com árvores e casas espalhadas,

que ficava distante do mosteiro

uma légua das fartas, das puxadas.

 

Surpreendido por se ver tão longe, 

e fraco por haver andado tanto, 

sentou-se a descansar o bom do monge 

com a resignação de quem é santo. 

 

O luar, um luar claríssimo, nasceu: 

num raio dessa linda claridade, 

o Menino Jesus baixou do céu, 

pôs-se a brincar com o capuz do frade. 

 

Perto uma bica d’água soluçante 

juntava o seu murmúrio ao dos pinhais; 

os rouxinóis ouviam-se distante; 

o luar mais alto iluminava mais. 

 

De braço dado para a fonte vinha 

um par de noivos, todo satisfeito: 

ela trazia ao ombro a cantarinha; 

ele trazia o coração no peito… 

 

Sem suspeitarem de que alguém ouvisse 

trocaram beijos ao luar tranquilo…

o Menino, porém, ouviu e disse: — 

oh! Frei António, o que foi aquilo? 

 

O Santo, erguendo a manga do burel 

para tapar o noivo e a namorada, 

mentiu numa voz doce como o mel: 

— não sei que fosse… eu cá não ouvi nada. 

 

Uma risada límpida, sonora, 

vibrou com timbres d’oiro no caminho. 

— ouviste, Frei António? Ouviste agora? 

— ouvi, Senhor, ouvi; é um passarinho. 

 

— Tu não estás com a cabeça boa; 

um passarinho e a cantar assim? 

E o pobre Santo António de Lisboa 

calou-se embaraçado. Mas por fim 

 

corado como as vestes dos cardeais, 

achou esta saída redentora: 

— Se o Menino Jesus pergunta mais 

queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora. 

 

Voltando-lhe a carinha contra a luz, 

e contra aquele amor sem casamento 

pegou-lhe ao colo e acrescentou: 

— Jesus são horas. E abalaram para o convento. 

 

in Augusto Gil, Luar de Agosto, 1909.

 

Notas

 

(1) in Francisco Xavier da Silva, Ensaios Poéticos, Tipographia Universal, Lisboa, 1868.

(2) in Cancioneiro Popular Português, coligido por J. Leite de Vasconcelos e coordenação de Maria Arminda Zaluar Nunes, III, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1983.

(3) in Cantigas Populares colecionados por Francisco Xavier da Silva, Porto, tipografia de Rodrigo José de Oliveira Guimarães, 1871.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vieira da Silva (1908-1992), Tempo de Paz, de 1985, de colecção partícular.

 

 

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Ainda o envelhecimento e o amor perene num poema de Ada Negri

15 Quarta-feira Ago 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Arpad Szenes, Asa Negri, Maria Helena Vieira da Silva

Quanto permanece em nós de um intenso amor que se quebrou? No poema de Ada Negri (1870-1945), Aquele que passa, é uma resposta a esta interrogação que encontramos. Não é evidentemente a única. Depende apenas de como terminou, e de como em nós ele viveu.

 

Amores há em que a partilha é tal que à medida do passar do tempo fica progressivamente indistinta a parte que em cada um é original e de raiz, e qual parte é a absorção do outro que se ama no desejo de simbiose que esse amor traz. É de um amor algo assim que o poema de Ada Negri nos fala:

…
E em ti não há membro nem ponta de carne ou átomo de alma que não tenha uma marca de amor.
Que tu viveste apenas para amar aquele que te amava,
…

 

E este amor na sua força, contraria o envelhecimento, no sentido de gastar a vida que passou. Diz-nos o poema quanto um amor intenso é fonte de juventude perene:

O desconhecido que passa e te acha ainda digna de uma fugidia palavra de desejo,…

E nem que quisesses podias arrancar de ti essa veste que o amor teceu.
Ele, ignaro, em ti já não bela, em ti já não jovem, saúda a graça do deus:
Respira, passando, em ti já não bela, em ti já não jovem, o aroma precioso do deus:
…

 

 

Aquele que passa

O desconhecido que passa e te acha ainda digna de uma fugidia palavra de desejo,
Talvez porque na sombra da noite tão doce de Maio
Ainda resplendem teus olhos, ainda tem vinte anos a ligeira figura deslizante,
Não sabe que foste amada, por aquele que amaste amada, em plena e soberba delícia de amor,
E em ti não há membro nem ponta de carne ou átomo de alma que não tenha uma marca de amor.
Que tu viveste apenas para amar aquele que te amava,
E nem que quisesses podias arrancar de ti essa veste que o amor teceu.
Ele, ignaro, em ti já não bela, em ti já não jovem, saúda a graça do deus:
Respira, passando, em ti já não bela, em ti já não jovem, o aroma precioso do deus:
Só porque o levas contigo, doce relíquia à sombra de um sacrário.

 

Tradução de Jorge de Sena
Transcrito de Poesia do Século XX, Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, Fora do Texto, Coimbra, 1994.

 

 

Abre o artigo a imagem de um desenho de Arpad Szenes (1897-1985) com um retrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992). Para os leitores familiarizado com a biografia do casal de pintores, talvez seja menos despropositada a razão da escolha desta imagem para acompanhar este poema.

 

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A Eternidade — poema de Rimbaud em versão de Augusto de Campos

19 Quinta-feira Nov 2015

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Arthur Rimbaud, Maria Helena Vieira da Silva

Vieira da Silva (1908 – 1992) - Caminhos da Paz 1985 600pxA eternidade, como não-tempo, não tem história, portanto, não tem acontecimentos. A humanidade perante o horror deste vazio foi preenchendo o conceito através das diversas religiões com o que mais gostava, qual casa de bonecos acrescentada dos enfeites mais variados, e tem-lhe chamado paraíso. Seguiu-se-lhe uma moral fixando o processo de poder usufruir deste paraiso e a ele aceder, definindo-se para isso o bem e o mal.

Ao longo da história a imposição do paraíso de uns tem sido o inferno de outros, fazendo da vida uma luta por vezes sem quartel, na imposição do bem de uns aos outros que não o querem, ou não o reconhecem.

Para lidar com este abstruso conceito — Lá não há esperança / E não há futuro — socorro-me de um poema de Arthur Rimbaud (1854-1891), de cuja poesia escrevia Paul Verlaine (1844-1896): a língua é clara e mantém-se límpida mesmo quando a ideia se turva ou o sentido se torna obscuro.

A Eternidade

 

De novo me invade.

Quem? — A Eternidade.

É o mar que se vai

Com o sol que cai.

 

Alma sentinela,

Ensina-me o jogo

Da noite que gela

E do dia em fogo.

 

Das lides humanas,

Das palmas e vaias,

Já te desenganas

E no mar te espraias.

 

De outra nenhuma,

Brasas de cetim,

O Dever se esfuma

Sem dizer: enfim.

 

Lá não há esperança

E não há futuro.

Ciência e paciência,

Suplício seguro.

 

De novo me invade.

Quem? — A Eternidade.

É o mar que se vai

Com o sol que cai.

Maio 1972

 

Versão de Augusto de Campos, Rimbaud Livre, Editora Perspectiva S.A., São Paulo, Brasil, 1992.

 

Poema original

 

L’Éternité

 

Elle est retrouvée.

Quoi ? – L’Éternité.

C’est la mer allée

Avec le soleil.

 

Âme sentinelle,

Murmurons l’aveu

De la nuit si nulle

Et du jour en feu.

 

Des humains suffrages,

Des communs élans

Là tu te dégages

Et voles selon.

 

Puisque de vous seules,

Braises de satin,

Le Devoir s’exhale

Sans qu’on dise : enfin.

 

Là pas d’espérance,

Nul orietur.

Science avec patience,

Le supplice est sûr.

 

Elle est retrouvée.

Quoi ? – L’Éternité.

C’est la mer allée

Avec le soleil.

 

Rimbaud, Poésies completes, Librairie Générale Française, 1998.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), Caminhos da Paz, de 1985.

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Neste café quase deserto… com Mário Dionísio

18 Sexta-feira Jan 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Maria Helena Vieira da Silva, Mário Dionísio

Vieira_da_Silva_Maria_Helena_-Interieur_a_la_spiraleNeste cruzar de poesia e quotidiano com que me entretenho e ocupo o blog, percorro por vezes caminhos inesperados, como ir ao encontro deste poema de Mário Dionísio (1916-1993), poeta e critico outrora famoso e hoje empurrado para um inglório esquecimento.

46
Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difusa duma ausência
que não magoa e sabe bem

Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto

O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente

Que longe tudo o que procuro!

Ser como os outros todos um instante que seja é tão tranquilo e diferente!

sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro

O poema pertence ao livro Memória dum pintor desconhecido, de 1965, onde os ecos do pintor, que Mário Dionísio também foi, se encontram.

Cruzando ainda um desolado quotidiano, surge-nos no mesmo livro Que bela manhã de névoa, reflexão em paisagem de gélida beleza, na busca dos outros em si:
Sozinho vou falando por ruas que não há e nos meus dedos / só de névoa outros sinto aflitos sussurrando / não pode ser não pode ser

48
Que bela manhã de névoa
para ser infeliz em companhia

Está frio está bom quase ninguém
nas ruas
E se alguém passa perto vai tão longe e sem ruído que se pensa
em algodão ou asas

Que cidade é esta?

A mágoa que me resta como sempre levo-a
escondida bem no fundo da algibeira
mas vejo-a solta em flocos sobre as casas e suspensa
pairar no céu que mal se vê e enredar-se
em quase roxas chaminés e nas arvores
nuas

Um só toque de verde e vermelho de Veneza deve dar
em muito branco de prata esta frieza de tempo cego e húmida surpresa
onde algures arde uma fogueira
que enxuto faz por dentro o que por fora é água
só e arrepio de gélida beleza

Que vasto o mundo e estranho e que minuto!
E que ilusão saber alguma coisa ou não saber!

Sozinho vou falando por ruas que não há e nos meus dedos
só de névoa outros sinto aflitos sussurrando
não pode ser não pode ser

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Poemas para o Verão: poema de Wallace Stevens

04 Sábado Ago 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Maria Helena Vieira da Silva, Wallace Stevens

A noite de Verão é como uma perfeição de pensamento. escreveu Wallace Stevens (1879-1955) no poema que hoje arquivo.

Não sei de outra forma mais exacta para exprimir o que em noites de Verão por vezes acontece, como hoje. Corre uma brisa suave que o som do saxofone de Ben Webster embala. O ar quente envolve-se de um acre, potente e delicioso cheiro a resina de pinheiro, e num quase mágico momento o tempo pára. Não há antes nem depois, apenas a harmonia de um céu onde a lua esplende, o cheiro inebria os sentidos, e o  som do saxofone decanta a emoção. É o Verão, são as ferias de Verão!

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo, / No qual não há outro sentido, a própria verdade / / Está calma, ela própria é verão e noite, …

Leia-se o poema na totalidade:

A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.
O leitor tornava-se no livro, e a noite de verão

Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página,

A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem

A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.

O silêncio fazia parte do sentido, parte do espirito:
Era a perfeição no seu acesso à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo,
No qual não há outro sentido, a própria verdade

Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.

In Transport to Summer (1947), tradução de David Mourão-Ferreira.

Não sei de melhor companhia pictórica para este poema que alguma pintura de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) com que acompanhei o artigo e de quem escolho uma das suas bibliotecas para fecho.

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