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Neste cruzar de poesia e quotidiano com que me entretenho e ocupo o blog, percorro por vezes caminhos inesperados, como ir ao encontro deste poema de Mário Dionísio (1916-1993), poeta e critico outrora famoso e hoje empurrado para um inglório esquecimento.
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Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difusa duma ausência
que não magoa e sabe bem
Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto
O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente
Que longe tudo o que procuro!
Ser como os outros todos um instante que seja é tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro
O poema pertence ao livro Memória dum pintor desconhecido, de 1965, onde os ecos do pintor, que Mário Dionísio também foi, se encontram.
Cruzando ainda um desolado quotidiano, surge-nos no mesmo livro Que bela manhã de névoa, reflexão em paisagem de gélida beleza, na busca dos outros em si:
Sozinho vou falando por ruas que não há e nos meus dedos / só de névoa outros sinto aflitos sussurrando / não pode ser não pode ser
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Que bela manhã de névoa
para ser infeliz em companhia
Está frio está bom quase ninguém
nas ruas
E se alguém passa perto vai tão longe e sem ruído que se pensa
em algodão ou asas
Que cidade é esta?
A mágoa que me resta como sempre levo-a
escondida bem no fundo da algibeira
mas vejo-a solta em flocos sobre as casas e suspensa
pairar no céu que mal se vê e enredar-se
em quase roxas chaminés e nas arvores
nuas
Um só toque de verde e vermelho de Veneza deve dar
em muito branco de prata esta frieza de tempo cego e húmida surpresa
onde algures arde uma fogueira
que enxuto faz por dentro o que por fora é água
só e arrepio de gélida beleza
Que vasto o mundo e estranho e que minuto!
E que ilusão saber alguma coisa ou não saber!
Sozinho vou falando por ruas que não há e nos meus dedos
só de névoa outros sinto aflitos sussurrando
não pode ser não pode ser