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O cheiro de Lisboa e poesia popular a Santo António

14 Domingo Jun 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

≈ 5 comentários

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Augusto Gil, Francisco Xavier da Silva, J. Leite de Vasconcelos, Maria Helena Vieira da Silva

Regressei, e não consigo dizer com a canção popular: Cheira bem, cheira a Lisboa. Lisboa cheira a tristeza. Nem o sol que por vezes surge a consegue dissolver. Tempo de festa pelos Santos Populares era este, e nestes dias a festa está ausente. Aquela alegria espontânea que se apossava de nós sem razão aparente, apenas por circular entre a multidão disponível e alegre, desapareceu. Estão aí as músicas que faziam o pano de fundo das festas; e a memória de as ter vivido. São apenas um pálido arremedo da sua alegria, que voltará, espero.

Se pelo país a devoção a cada um dos santos populares: S. António, S. João, e S. Pedro, é variável, e cada povoação tem o seu preferido, em Lisboa, Santo António tem a primazia. Santo brejeiro na imagem popular, a ele se associa a alegria que por estes dias invadia a cidade:

 

Ó meu Santo galhofeiro,

Ó meu Santo brincalhão,

Descei do vosso poleiro,

Vinde ouvir minha canção…

 

Comia-se, bebia-se, e amores efémeros ou duradouros começavam. Seja ou não a tradição o que era, é facto que a alegria associada às festas de Santo António tem continuado, adaptando-se às peculiaridades do tempo que passa, e este ano não foi excepção. À espera que a alegria partilhada nas ruas esteja de regresso no próximo ano, continuemos esta digressão por poesia de recorte popular.

A invocação ao Santo citada antes, é o início de um poema do século XIX, O Casamenteiro. Foi escrito por Francisco Xavier da Silva (1832-????) em véspera de Santo António, no ano de 1867(1), e é retrato de um sentir profundamente enraizado que associa a imagem de António a casamentos felizes:

…

Tu ó Santo milagroso 

Atende seus requerimentos,

Faz este povo ditoso;

Decreta mil casamentos…

…

 

Os riscos da vida urbana fizeram desaparecer as fogueiras de Santo António onde se queimava alecrim, perfumando a noite, e nós, moços, numa inebriante alegria, saltávamos, na emulação de ver quem cobria a fogueira mais alta. O baile fazia-se na sua proximidade, numa partilha socialmente indistinta:

…

Aqui em torno à fogueira,

Santo de tantos primores,

Vem a cachopa altaneira 

Dançar com os seus amores…

 

Vem da cidade o janota,

Vem da montanha o lapónio,

Reina o prazer, a risota,

Seu patrono é Santo António.

…

 

Além de evocar tradições enraizadas nas festas de Santo António, o poema sublinha também, a terminar, a faceta brejeira que a crença popular associa ao santo:

…

Mancebos  beijai-lhe o manto

António é vosso rival!

 

Ele às donzelas quer tanto…

Mas não julguem que é por mal…

Quebra as bilhas por encanto…

Manda-as ir ao roseiral…

 

Estes versos ecoam uma quadra popular recolhida por  J. Leite de Vasconcelos (2) que dá também ela conta de comportamentos do santo, não tão santos assim:

 

Santo António, com ser santo, 

Também teve os seus amores;

Quando os santinhos namoram, 

Que farão os pecadores?

 

ou está outra:

 

Santo António, por ser santo

Não deixa de ser velhaco:

Levou as moças à fonte,

Levou duas, trouxe quatro!

 

Outras quadras populares alusivas ao santo há, e transcrevo desta recolha mais duas que referem amores e casamentos, a primeira com a novidades de pedir marido rico, a segunda pede protecção e sublinha a capacidade de o santo fazer milagres de amor:

 

*

Ó meu rico Santo António,

Meu santo casamenteiro,

Dai-me vós um bom marido,

Que tenha muito dinheiro.

 

*

O Santo António é bom santo,

Pois faz milagres de amor;

Hei-de a ele ir confessar-me

E há-de ser meu protector.

 

O mesmo Francisco Xavier da Silva, autor do poema de início, publicou em 1871 uma colecção de cantigas populares (3), na qual recolho estas quadras a Santo António, onde a mesma imagem do santo casamenteiro transparece:

 

*

Casai-me meu Santo António 

já que és tão milagreiro, 

conhecido em toda a parte 

como bom casamenteiro.

 

*

Vou rezar um padre nosso 

ao meu rico Santo António 

para que me case cedo 

e me livre do demónio.

 

*

Ó meu rico Santo António

rogai ao vosso menino 

que faça mudar depressa 

Este meu cruel destino. 

 

Numa abordagem diferente da cumplicidade entre o santo e Jesus referida na quadra anterior, Augusto Gil (1873-1929), num poema há décadas assimilado pela memória popular, O Passeio de Santo António, retrata além de uma simpática bonomia, imagem de marca do santo, uma atitude tolerante de António relativamente a comportamentos que a igreja condenava, protegendo e desviando a atenção do menino Jesus (a igreja) das manifestações amorosas do par entrevisto:

 

Augusto Gil — O Passeio de Santo António 

 

Saíra Sto. António do convento 

a dar o seu passeio costumado, 

e a repetir num tom pesado e lento 

um cândido sermão sobre o pecado. 

 

Andando, andando sempre, repetia 

o divino sermão, piedoso e brando, 

e nem notou que a tarde esmorecia, 

que vinha a noite plácida baixando. 

 

E andando, andando, viu-se num outeiro

com árvores e casas espalhadas,

que ficava distante do mosteiro

uma légua das fartas, das puxadas.

 

Surpreendido por se ver tão longe, 

e fraco por haver andado tanto, 

sentou-se a descansar o bom do monge 

com a resignação de quem é santo. 

 

O luar, um luar claríssimo, nasceu: 

num raio dessa linda claridade, 

o Menino Jesus baixou do céu, 

pôs-se a brincar com o capuz do frade. 

 

Perto uma bica d’água soluçante 

juntava o seu murmúrio ao dos pinhais; 

os rouxinóis ouviam-se distante; 

o luar mais alto iluminava mais. 

 

De braço dado para a fonte vinha 

um par de noivos, todo satisfeito: 

ela trazia ao ombro a cantarinha; 

ele trazia o coração no peito… 

 

Sem suspeitarem de que alguém ouvisse 

trocaram beijos ao luar tranquilo…

o Menino, porém, ouviu e disse: — 

oh! Frei António, o que foi aquilo? 

 

O Santo, erguendo a manga do burel 

para tapar o noivo e a namorada, 

mentiu numa voz doce como o mel: 

— não sei que fosse… eu cá não ouvi nada. 

 

Uma risada límpida, sonora, 

vibrou com timbres d’oiro no caminho. 

— ouviste, Frei António? Ouviste agora? 

— ouvi, Senhor, ouvi; é um passarinho. 

 

— Tu não estás com a cabeça boa; 

um passarinho e a cantar assim? 

E o pobre Santo António de Lisboa 

calou-se embaraçado. Mas por fim 

 

corado como as vestes dos cardeais, 

achou esta saída redentora: 

— Se o Menino Jesus pergunta mais 

queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora. 

 

Voltando-lhe a carinha contra a luz, 

e contra aquele amor sem casamento 

pegou-lhe ao colo e acrescentou: 

— Jesus são horas. E abalaram para o convento. 

 

in Augusto Gil, Luar de Agosto, 1909.

 

Notas

 

(1) in Francisco Xavier da Silva, Ensaios Poéticos, Tipographia Universal, Lisboa, 1868.

(2) in Cancioneiro Popular Português, coligido por J. Leite de Vasconcelos e coordenação de Maria Arminda Zaluar Nunes, III, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1983.

(3) in Cantigas Populares colecionados por Francisco Xavier da Silva, Porto, tipografia de Rodrigo José de Oliveira Guimarães, 1871.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vieira da Silva (1908-1992), Tempo de Paz, de 1985, de colecção partícular.

 

 

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Quem canta seu mal espanta — As voltas do amor em Quadras Populares

18 Terça-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Albert Neuhuys, J. Leite de Vasconcelos

Quem canta seu mal espanta,
Quem chora, mais o aumenta
Eu canto por espalhar
A paixão que me atormenta.

 

As quadras populares são um retrato fiel de um modo de estar na vida e plasmam alegrias e tristezas de um povo que talvez já não exista. Circularam pela memória e passaram de geração em geração, havendo delas hoje apenas as recolhas de etnógrafos que ainda a tempo as coligiram.

Hoje debruço-me sobre uma recolha de J. Leite de Vasconcelos no final do séc. XIX, divulgada com o nome: Poesia Amorosa do Povo Português.
Nas quadras escolhidas encontramos a rima abcb, e quase sempre a estrutura numa espécie de dois dísticos em que os primeiros dois versos apresentam o assunto e os últimos dois versos fazem uma conclusão frequentemente inesperada nas comparações que convocam, sem que a quadra deixe de ser uma unidade poética autónoma:

 

A amar e a escolher amante
Ensinou-me quem podia:
A amar foi a natureza,
A escolher, a simpatia.

 

 

Os assuntos girando à volta do sentimento amoroso, variam entre desejo e sedução:

 

Quando te eu vi, logo disse:
— Lindos olhos para amar!
Que linda boca p’ra beijos!
Oh quem t’os pudera dar!

 

Eu fui o que disse ao sol
Que não tornasse a nascer:
À vista desses teus olhos
Que vem o sol cá fazer?

 

 

esperança e receio de amar:

 

O amor, quando se encontra,
Causa penas, e dá gosto:
Sobresalta o coração,
Sobem as cores ao rosto.

 

Fui assentar-me entre as nuvens,
De uma estrela fiz encosto:
Abracei-me a uma delas.
Cuidando que era o teu rosto.

 

 

desgosto e queixas:

 

Suspiros e ais e dores,
Imaginações e cuidados:
São o manjar dos amantes,
Quando andam arrufados.

 

Torno de novo a queixar-me.
Meus ais não fazem efeito:
Podem abrandar as rochas,
Mas não abrandam teu peito.

 

Lágrimas são meu almoço
Janto suspiros e dores,
À tarde merendo ais,
À noite ausência d’amores.

 

 

e algum desprendimento emocional, o que é menos frequente:

 

Cuidavas, por me deixares,
Que eu de paixão morreria:
Foi-se um amor, ficou outro,
Vivo na mesma alegria.

 

 

Estes assuntos de amor vêm tratados com uma agradável ligeireza de tom, bem longe dos transportes angustiados de poetas eruditos:

 

Quem diz que o amar enfada,
De certo que nunca amou:
Eu amei e fui amado,
Nunca o amar me enfadou.

 

 

Eis mais algumas quadras onde os mesmos aspectos do sentimento amoroso bailam:

 

O coração e os olhos
São dois amantes leais:
Quando o coração tem pena,
Logo os olhos dão sinais.

 

O cantar é dom dos anjos;
O bailar, dos namorados;
A alegria, dos solteiros;
A tristeza, dos casados.

 

Meu coração é relógio,
Meu peito dá badaladas:
Nos dias que eu te não vejo,
Trago-te as horas contadas.

 

O teu cabelo, menina,
Mete-te infinita graça:
Parece meadas de ouro
Adonde o sol se embaraça.

 

Amar e saber amar,
Qualquer amante faz isso:
Amar-te com lealdade.
Só eu nasci para isso.

 

Coitadinho de quem tem
Seus amores em segredo:
Passa por eles na rua,
Não lhe faia, que tem medo.

 

Ó meu amor lá de longe,
Perde um dia vem-me ver:
Quem não aparece, esquece,
Também eu posso esquecer.

 

Dizem que o amor é morte,
Oh quem me dera morrer!
Mais vale morrer d’amores
Do que sem eles viver.

 

O amor é grande mal.
Não amar é mal maior;
Mas amar sem ser amado
É dos males o pior.

 

Por te amar deixei a Deus,
Vê lá que gloria perdi!
Agora vejo-me só,
Sem Deus, sem gloria, sem ti!

 

Fechei a porta à desgraça,
Entrou-me pela janela:
Quem nasce com a má sorte
Não pode fugir a ela.

 

Que me quererá a desgraça,
Que atrás de mim corre tanto?
Hei-de parar e dizer-lhe
Que eu de a ver me não espanto.

 

Dizem que o chorar nos tira
As penas ao coração:
Tanto tenho eu chorado,
E as penas inda cá estão.

 

 

E com esta sábia conclusão me despeço:

 

Inda que o lume se apague,
Na cinza fica o calor:
Inda que o amor se ausente.
No coração fica a dor.

 

Poemas transcritos de Poesia Amorosa do Povo Português, Breve estudo e colecção por J. Leite de Vasconcelos, Lisboa, 1890.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Albert Neuhuys (1844-1914) de 1880.

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