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Quem canta seu mal espanta,
Quem chora, mais o aumenta
Eu canto por espalhar
A paixão que me atormenta.
As quadras populares são um retrato fiel de um modo de estar na vida e plasmam alegrias e tristezas de um povo que talvez já não exista. Circularam pela memória e passaram de geração em geração, havendo delas hoje apenas as recolhas de etnógrafos que ainda a tempo as coligiram.
Hoje debruço-me sobre uma recolha de J. Leite de Vasconcelos no final do séc. XIX, divulgada com o nome: Poesia Amorosa do Povo Português.
Nas quadras escolhidas encontramos a rima abcb, e quase sempre a estrutura numa espécie de dois dísticos em que os primeiros dois versos apresentam o assunto e os últimos dois versos fazem uma conclusão frequentemente inesperada nas comparações que convocam, sem que a quadra deixe de ser uma unidade poética autónoma:
A amar e a escolher amante
Ensinou-me quem podia:
A amar foi a natureza,
A escolher, a simpatia.
Os assuntos girando à volta do sentimento amoroso, variam entre desejo e sedução:
Quando te eu vi, logo disse:
— Lindos olhos para amar!
Que linda boca p’ra beijos!
Oh quem t’os pudera dar!
Eu fui o que disse ao sol
Que não tornasse a nascer:
À vista desses teus olhos
Que vem o sol cá fazer?
esperança e receio de amar:
O amor, quando se encontra,
Causa penas, e dá gosto:
Sobresalta o coração,
Sobem as cores ao rosto.
Fui assentar-me entre as nuvens,
De uma estrela fiz encosto:
Abracei-me a uma delas.
Cuidando que era o teu rosto.
desgosto e queixas:
Suspiros e ais e dores,
Imaginações e cuidados:
São o manjar dos amantes,
Quando andam arrufados.
Torno de novo a queixar-me.
Meus ais não fazem efeito:
Podem abrandar as rochas,
Mas não abrandam teu peito.
Lágrimas são meu almoço
Janto suspiros e dores,
À tarde merendo ais,
À noite ausência d’amores.
e algum desprendimento emocional, o que é menos frequente:
Cuidavas, por me deixares,
Que eu de paixão morreria:
Foi-se um amor, ficou outro,
Vivo na mesma alegria.
Estes assuntos de amor vêm tratados com uma agradável ligeireza de tom, bem longe dos transportes angustiados de poetas eruditos:
Quem diz que o amar enfada,
De certo que nunca amou:
Eu amei e fui amado,
Nunca o amar me enfadou.
Eis mais algumas quadras onde os mesmos aspectos do sentimento amoroso bailam:
O coração e os olhos
São dois amantes leais:
Quando o coração tem pena,
Logo os olhos dão sinais.
O cantar é dom dos anjos;
O bailar, dos namorados;
A alegria, dos solteiros;
A tristeza, dos casados.
Meu coração é relógio,
Meu peito dá badaladas:
Nos dias que eu te não vejo,
Trago-te as horas contadas.
O teu cabelo, menina,
Mete-te infinita graça:
Parece meadas de ouro
Adonde o sol se embaraça.
Amar e saber amar,
Qualquer amante faz isso:
Amar-te com lealdade.
Só eu nasci para isso.
Coitadinho de quem tem
Seus amores em segredo:
Passa por eles na rua,
Não lhe faia, que tem medo.
Ó meu amor lá de longe,
Perde um dia vem-me ver:
Quem não aparece, esquece,
Também eu posso esquecer.
Dizem que o amor é morte,
Oh quem me dera morrer!
Mais vale morrer d’amores
Do que sem eles viver.
O amor é grande mal.
Não amar é mal maior;
Mas amar sem ser amado
É dos males o pior.
Por te amar deixei a Deus,
Vê lá que gloria perdi!
Agora vejo-me só,
Sem Deus, sem gloria, sem ti!
Fechei a porta à desgraça,
Entrou-me pela janela:
Quem nasce com a má sorte
Não pode fugir a ela.
Que me quererá a desgraça,
Que atrás de mim corre tanto?
Hei-de parar e dizer-lhe
Que eu de a ver me não espanto.
Dizem que o chorar nos tira
As penas ao coração:
Tanto tenho eu chorado,
E as penas inda cá estão.
E com esta sábia conclusão me despeço:
Inda que o lume se apague,
Na cinza fica o calor:
Inda que o amor se ausente.
No coração fica a dor.
Poemas transcritos de Poesia Amorosa do Povo Português, Breve estudo e colecção por J. Leite de Vasconcelos, Lisboa, 1890.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Albert Neuhuys (1844-1914) de 1880.