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É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá o nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. …
Do anúncio da paixão à sua consumação, escolho quatro poemas de Eugénio de Andrade (1923-2005) para ilustrar o erotismo velado que percorre a poesia portuguesa do século XX e em tempos referi a pretexto do poema Metafísica de Adolfo Casais Monteiro.
Nestes poemas Eugénio de Andrade fala da paixão com uma tocante arte da palavra escrita. Na obsessiva limitação do léxico faz maravilhas:
Talvez nem tenha nome.
Anunciado só pelo frémito
da folhagem.
O riso invisível, o grito
de um pássaro, o escuro
da voz. …
Anunciada a chegada do amor, a sua consumação é contada com a economia, elegância, e emoção constantes na sua poesia:
…
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme, …
Eis os poemas antes citados:
Talvez
Talvez nem tenha nome.
Anunciado só pelo frémito
da folhagem.
O riso invisível, o grito
de um pássaro, o escuro
da voz. Certa doçura,
certa violência.
O espesso, volúvel
tecido da noite agora a roçar
o corpo da água. E por fim
a muito lenta paixão
do fogo, sufocada.
Era o verão.
in O Sal da Língua, 1995
Da Maneira Mais Simples
É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá o nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.
in Os Sulcos da Sede, 2001.
Poema 25
Cala-te, a luz arde entre os lábios
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua?, é teu este braço?
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca,
também a terra morre.
in Matéria Solar, 1980.
Poemas sem que o género dos protagonistas se explicite, ganham uma capacidade universal de falar ao coração das gentes, aflorando um erotismo de que Vaguíssimo retrato, com que termino esta volta, é um paradigma:
Vaguíssimo retrato
Levar-te à boca:
beber a água
mais funda do teu ser…
Se a luz é tanta
— como se pode morrer?
in Obscuro Domínio, 1971.
Poemas transcritos de Eugénio de Andrade, Poesia, Rosto Editora, lda, V.N.Gaia, 2011.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Heinrich Hoerle (1895-1936), Rapariga melancólica, de 1930.
É fácil imaginar esta rapariga leitora de poesia, sonhadora com os frémitos da paixão, e melancólica na expectativa da sua espera.
Eugenio de Andrade, o meu poeta.
Tempos bons e maus, sempre acompanhou a minha vida. Antes dio 25 abril foi o meu amado poeta, através de um poema escrito da prisão. E daí o enamoramento até hoje. Cada dia mais.
Chegados os seus 100 anos, que seriam de alegriA se fosse vivo, mas são de muito amor hoje.
A minha profunda homenagem ao homem que me fez descobrir o amor atravez das suas palavras.
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