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Há um explícito/implícito erotismo em muita da poesia de Célia Moura (1971) que faz mover a imaginação nos territórios onde a palavra cruza o frémito do corpo:
*
Entrego meu corpo
à rebeldia do vento.
Nele me dispo, danço
e descanso.
…
Escolhi para trazer ao blog alguns poemas onde o caminho para a evidência da ideia global se percorre no sinuoso da palavra poética, explosiva e iridiscente, virando faiscante incêndio, quais sejam o poema Promessa transcrito à frente, ou este:
*
Que tuas mãos sejam
o lume que me invade as coxas
e os sentidos.
Que eu seja a pele e a loucura
brincando entre os cabelos
dessa tua lucidez
amado!
Que para sempre nos percamos
no fluído dos corpos
embriagados de paixão
baloiçando risos e mostos
num alpendre de beijos.
in No Hálito De Afrodite
A recusa total do inócuo pela afirmação explícita do desejo que alimente o corpo e dele vive, é marca de água desta poesia:
*
Faz-me vir de novo
orquídea,
girassol,
deserto
ou todas as palavras
que nunca ousaram
os poemas
para ti
paridos!
…
Em todos este poemas, mais de aspiração que de experiência feitos, e que o desejo destila e alimenta, há sempre o outro, o não nomeado ausente, destinatário desta poesia, e esta ocultação é o estímulo que alimenta a imaginação do leitor.
Além da afirmação do desejo satisfeito ou manifestado, há também uma interrogação poética sobre a sua natureza, origem e finalidade, em poemas como [Talvez amanhã alguém] ou O cérebro do mundo:
Busco incessantemente o cérebro do mundo,
essa lava que me dói o corpo inteiro
esse caos, essa ordem desordenada
cuja vertigem
se apodera das fêmeas
e da volúpia que trilha caminhos novos.
…
ou ainda no poema que encerra o artigo, No Corpo:
…
— Porque tudo é tão belo assim Pai e tão triste?!
E não cesso de O questionar, e me zango com Ele
Ainda que O ame ou respeite, nem eu sei…
…
Seguem os poemas citados, agora na totalidade. Os poemas sem título abrem com o primeiro verso destacado entre [ ].
Promessa
E quando finalmente meu corpo
Em Primavera florescer
Para ti
Sequioso de vida
E minhas pernas queimarem o feitiço
Dormente dos teus flancos
Como uma tenaz em brasa
Saboreando odores
Doando néctares como licores,
Numa embriaguez prometida
Rebolando o êxtase da poesia
Nos teus braços
E aí me fizeres morrer
Te fizer morrer
E nos fizermos renascer…
Saberás amor que permanecerei.
Serei qualquer estação do ano
E antes que pronuncies meu nome
Te beijarei.
in No Hálito de Afrodite
No teu sémen
Faz-me vir de novo
orquídea,
girassol,
deserto
ou todas as palavras
que nunca ousaram
os poemas
para ti
paridos!
Sonho que sou barro
em teu sopro,
candeia de azeite
no sobrado
acariciando esses cabelos
anunciados de neve
enquanto me decifras
os mamilos
e sussurras lentamente
— era uma vez…
Era uma vez,
um sémen novo
a escorregar pelas virgens
do Jardim
incensando pelo meu corpo
uma fogueira de rubras rosas
no meu ventre,
champanhe estremecendo-me
o sangue nas artérias
e tango em Buenos Aires
mordendo-me ânsias
beliscando a alma
desassossegando
alvoradas,
enquanto adormeces
nesse teu silabar sereno
— era uma vez…
E saio para a cidade
inaugurada de nós,
sou semente primeira
de um girassol.
in No Hálito De Afrodite
[Entrego meu corpo]
Entrego meu corpo
à rebeldia do vento.
Nele me dispo, danço
e descanso.
Cruel tem sido este desassossego
asfixiando borboletas dentro do peito
enquanto me morrem entre os dedos
suculentos beijos.
Entrego meu corpo
ao sarcasmo do tempo
mas é ao vento que pertenço.
Mais tarde me vestirei de chuva
a publicar
[Talvez amanhã alguém]
Talvez amanhã alguém
venha fechar meus olhos.
Hoje não!
Talvez amanhã alguém
me recorde com saudade
quando na enseada das ausências
eu já tiver partido nas asas de uma gaivota.
Sim,
amanhã eu voarei
hoje não!
Amanhã serei finalmente o grito amarfanhado
por décadas poetizado,
gargalhado
absurdamente sentenciado!
Deixarei decerto tantas bocas por beijar
tantos corpos por amar
tantos órfãos por acarinhar…
Amanhã, hoje não!
Preciso libertar-me de quem julgo ser
e ajoelhar-me indigna, imunda aos pés
do Criador.
08 de Março de 2019 — a publicar
O cérebro do mundo
Busco incessantemente o cérebro do mundo,
essa lava que me dói o corpo inteiro
esse caos, essa ordem desordenada
cuja vertigem
se apodera das fêmeas
e da volúpia que trilha caminhos novos.
Ah ser inteira e tão despedaçada
ó venusta peregrina!
Busco as palavras perfeitas
mas todas já foram celebradas
no fogo do meu e do teu baptismo
meu Irmão,
que desolação
não haver palavras mais
despertas
nem tão pouco o cérebro do mundo
esse que algures possa existir
e me escorra dos dedos
deixando-me gritos, tantos
dentro da cabeça.
Ah não parar o pensamento,
estancá-lo com um garrote,
cicatrizá-lo.
Vai peregrina, leva a loucura
morde o silêncio,
o cérebro do mundo é nada
busca somente o voo das andorinhas.
A publicar em Terra De Lavra
No Corpo
Eu me puxo
Repuxo
Envolvo
Deito
Deleito
Revolvo
Embriago
Não ressaco…
Eu me viro, reviro
Choro, gargalho, sorrio
Rascunho a vida,
Deito fora
Busco outra mais bonita,
Troco de caneta
Para sair bem a letra
Nunca me sinto só
Mas olho à minha volta
E não tem ninguém do meu lado.
E quando tem,
Não me sinto eu…
Eu me revolvo no caminho
E falo com Deus
— Porque tudo é tão belo assim Pai e tão triste?!
E não cesso de O questionar, e me zango com Ele
Ainda que O ame ou respeite, nem eu sei…
Eu caio prostrada bem no meio das pedras
E silencio o grito inútil da dor
Me amordaço no corpo
Para me libertar no espírito
E uma vez mais resmungo com o Criador
Mas é cambaleando que renasço
É mutilada,
Jorrando sangue pela caneta
Que eu quisera bonita da vida.
Uma criança me pega pela mão,
Ela que eu nem sei quem é,
Confusão se instala neste cérebro louco
De tanta lucidez,
E como uma brisa fresca de Outono
Me beija.
O céu tem agora odor de alfazema e risos de andorinhas.
A publicar em Terra De Lavra
Os poemas foram transcritos do blog celiamoura.wordpress.com/ com pequenas alterações pela autora.
Nota sobre a iconografia
A imagem de abertura mostra uma obra de Niki de Saint Phalle (1930-2002), São Sebastião ou Retrato do meu amor.
Hesitei em associar ao artigo uma imagem de explícita carga erótica, sublinhando a superfície dos poemas. Decidi-me por destacar o que lá não é nomeado mas cuja existência é a causa e fundamento desta poesia: o inominado parceiro para o prazer.
No incógnito do rosto, de onde pende a gravata de conotação fálica, e no acidentado da vida que atinge o corpo vestido, se consubstancia o ausente parceiro da paixão nesta escaldante poesia.
Adenda talvez desnecessária
A referência a São Sebastião no título da obra de arte prende-se com a tórrida carga erótica que a representação plástica de São Sebastião e seu martírio têm tido ao longo da história de arte.
Implícito?!?!?!?!?!?… Qual quê!!! É força nua e crúa, verdadeira e impoluta de moralidades hipócritas e desnecessárias! A esta e a qualquer poesia!!!
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