Etiquetas

, ,

A vida mundana e de sociedade alta, mesmo na poesia antiga, não foi pretexto para invenções poéticas frequentes. De Gomes Leal (1848-1921) temos o fabuloso retrato da Senhora Duquesa de Brabante, mais psicológico que mundano. António Macedo Papança (1852-1913), mais tarde Conde de Monsaraz, rapaz e homem rico, a quem a fortuna, e aproveitar as suas benesses, não parece ter perturbado, deixou na sua obra poética pontuais retratos aristocráticos, alguns em grande voga à época, como A Arquiduquesa, por exemplo.

Mundo extinto de que hoje apenas a literatura dá conta, recupero entre a poesia do Conde de Monsaraz um quadro aristocrático: Recepções de Inverno.

 

Recepções de Inverno

Em Dezembro é na estufa que a Marquesa
                Recebe às quintas-feiras,
Sob os leques dormentes das palmeiras,
No ambiente abafadiço dos fogões,
As pessoas de suas relações.

A estufa é alta, quadrilonga e clara;
Os bustos e as estátuas de Carrara,
Tocadas pelo escopro florentino,
Branquejam na folhagem verde-escura;
Adivinha-se o gosto e a compostura
Dum paladar meticuloso e fino.

As orquídeas de rútilos matizes,
Os cóleos e as begónias do equador,
Fartas de seiva e imóveis no torpor
              Dos vegetais felizes,

As avencas do norte e os largos fetos
              Duma suprema graça,
Onde se aninha o beijo que esvoaça
Na sombra dos recantos predilectos,

Revelam no salão por toda parte
               A distinção, a arte
               E a verve sedutora
               Dessa gentil senhora.

Nas festas da Marquesa toda a gente
               Se esforça por mostrar
Que é íntimo da casa, ou que é parente
               Da ilustre titular.

E ela passa por entre os convidados,
               Risonhos e curvados
               Defronte do espelhos,
Prodigamente desfolhando frases
Que animam os desejos dos rapazes
               E as ilusões dos velhos!

O busto firme e decotado; o rosto
               É uma graça vê-lo!
Nunca teve na vida um só momento
Em que o toldasse a sombra dum desgosto
Ou o fantasma trágico e sangrento
               De qualquer pesadelo.

As mulheres odeiam-na; pudera!
               A inveja corrói-as,
Ante essa apetecida Primavera
De colo nu, a transbordar de jóias,
E que arrasta, ondulando como as cobras,
A longa cauda de insolentes dobras.

Não lhe perdoam essas três virtudes:
O espírito, a beleza e a mocidade;
               Três coisas, na verdade,
                Que mordem, como abelhas,
As feias, as estúpidas e as velhas.

A Marquesa, porém, pouco lhe importa
                Que a boca da calúnia
                 Lhe vá gritar à porta;
Ela encara-a de frente, à luz do dia,
O seu olhar fulmina-a, e a ironia
                 Do seu sorriso pune-a!

Que lindas festas no palácio dela!
E é das mais procuradas distinções
                A entrada nos salões
Dessa mulher, tão caprichosa e bela.

                Ali nunca se dança,
                O que muito incomoda
As raparigas cujas mães consentem
Que andem nas salas de cabeça à roda
                E apertadas nos braços
Duns  jovens e finíssimos devassos!

Conversa-se e discute-se entre as flores;
Um quinteto de exímios professores
               À distância executa
Trechos da mais correcta procedência
               Que pulsam na regência
Duma ardente e fantástica batuta.

A estufa comunica por arcadas
               Com os vastos salões,
Galerias de telas afamadas,
               Apenas admiradas
Por um ou outro artista que frequenta
               Aquelas recepções .

Dispersas sobre os móveis, em vitrinas,
Mil coisas antiquíssimas e raras:
As velhas jóias da família, as rendas,
Os esmaltes, as pratas estupendas
               E as porcelanas caras.

Ao fundo a sala do bufete. As portas
               Abrem-se geralmente
À meia noite; e toda aquela gente
A invade num tropel que se baseia
Nessa suprema aspiração: — a ceia!

………………………………………………………

Mas nessas noites, que a Marquesa esmalta
Duma antiga e fidalga polidez,
Falta alguém, que afinal nunca faz falta:
Um fantoche tristíssimo — o Marquês!

in Poesias, 1892.

 

Acompanha o artigo a imagem de uma pintura de John Singer Sargent (1856-1925), Retrato de Madame X, pintado em 1883-84, e pertença da colecção do Metropolitan Museum of New York. A dama pintada é Madame Gautreau.

Vale a pena fazer um pouco da história da pintura e da modelo.
A pintura, exibida no Salon de Paris de 1884, como retrato de MadameXXX, não iludiu ninguém sobre a identidade da retratada, dama da alta sociedade. Considerado ousado para o cânone do retrato de sociedade à época, foi tal o escândalo — “rodeado por cardumes de atónitas e repugnadas mulheres” nas palavras de Vernon Lee (*)—, que o pintor, americano em Paris, deixou a França definitivamente, partindo para Inglaterra onde teve retumbante sucesso entre a sociedade vitoriana. Conservou o quadro consigo até o vender ao Metropolitan Museum em 1916, pedindo ao museu que não identificasse a modelo. Ficou por isso a pintura conhecida como retrato de Madame X.

Madame Gautreau (1859-1915), de solteira Virginie Avegno, nasceu na Louisiana. Por morte do pai na guerra civil, aos três anos a mãe deixou definitivamente os EUA e instalou-se em Paris com as duas filhas. Em 1881 Virginie casou com o banqueiro Pierre Gautreau.
Era à época uma celebrada beleza. Leiamos o que sobre ela escreveu um americano, Edward Simmons, estudante em Paris ao tempo: Lembro-me de ver Madame Gautreau, a famosa beleza da altura, e não conseguir resistir a segui-la silenciosamente como se segue um veado. Andava como Vergílio fala das deusas — deslizando — e parecia não dar passos. A cabeça e o pescoço ondulavam como uma jovem corsa, e qualquer coisa nela dava-nos a impressão de proporção infinita, infinita graça, e infinito balanço. Todos os artistas a queriam plasmar em mármore ou pintura (*).

(*) Americans in Paris (1860-1900), National Gallery Company Limited, London, 2006.