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É a uma espécie de jogo veja as diferenças que convido os leitores, ao transcrever o poema Lisboa de Gomes Leal (1848-1921).
Retrato de uma capital fim de século, parente da visão deixada por Cesário Verde (1855-1886) em O sentimento dum ocidental, sem a amplidão e a reflexão pessoal deste, é, no entanto, um poema/retrato onde da alegria ao sórdido, com ênfase na sensualidade, a vida decorre.
O desafio enunciado é triplo: comparar os retratos da cidade de final de oitocentos pintados por Gomes Leal e Cesário Verde, por um lado, e por outro a capital cosmopolita de início do século XXI, e encontrar tanto continuidades como roturas que dão a medida de quanto o nosso tempo é diferente do passado, e simultaneamente como nele radica.
(Nota: O poema de Cesário Verde encontra-se algures no blog, acessível aqui)
Lisboa
De certo, capital alguma do Ocidente
Tem mais afável sol, ou um céu mais clemente,
Mais colinas azuis, rio d’águas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pálidas crianças,
Mais igrejas e cães — e vargens, onde a esteira
Seja em tardes d’estio a flor da laranjeira!
A cidade é garrida e esbelta de manhã! —
É mais alegre então, mais límpida, mais sã.
Com certo ar virginal ostenta suas graças…
Há vida, confusão, murmúrios pelas praças.
— E, às vezes, em roupão, uma violeta bela
Vem regar o craveiro e assoma na janela.
A cidade é beata — e, às lúcidas estrelas,
O vicio, à noite, sai aos becos e às ruelas
Sorrindo, a perseguir burgueses e estrangeiros…
E à triste e dubia luz dos baços candeeiros,
— Em bairos imorais, onde se dão facadas —
Corre às vezes o sangue e o vinho nas calçadas.
As mulheres são gentis. — Umas altas, morenas,
Graves, sentimentais, amigas de novenas,
Ébrias de devoções, relêem as suas Horas.
— Outras fortes, viris, os olhos cor d’amoras,
Os lábios sensuais, cabelos bons, compridos,
— Às vezes, por enfado, enganam os maridos!
Os burgueses banais são gordos, chãos, contentes,
Amantes de cupido, egoistas, indolentes,
Graves nas procissões, nas festas, e nos lutos.
Bastante sensuais, bastante dissolutos,
Mas humildes cristãos!.. e, em místicos momentos,
— Tendo, ainda, crueis saudades dos conventos!
Viciosa ela se apraz num sono vegetal,
Adversa ao Pensamento e contrária ao Ideal.
— Mas, mau grado assim ser viciosa, egoista, à lua,
Como Nero também dá concertos na rua,
E, em noites de verão quando o luar consola,
— Põe ao peito a guitarra e a lírica viola.
No entanto a sua vida é quase intermitente,
Chafurda na inação, feliz, gorda, contente.
E, eclipsando as acções dos seus navegadores,
Abrilhanta a batota e as casas de penhores.
Faz guerra à Vida, à Acção, ao Ideal!.. e ao cabo
— É talvez a melhor amiga do Diabo!
in Claridades do Sul, segunda edição revista e aumentada, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1901.
Modernizei a ortografia.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Carlos Botelho (1899-1982), Lisboa e o Tejo; Domingo, 1935, da colecção do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNACC).