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Tag Archives: Gomes Leal

Lisboa por Gomes Leal

03 Sexta-feira Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa sec XIX

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Gomes Leal

É a uma espécie de jogo veja as diferenças que convido os leitores, ao transcrever o poema Lisboa de Gomes Leal (1848-1921).
Retrato de uma capital fim de século, parente da visão deixada por Cesário Verde (1855-1886) em O sentimento dum ocidental, sem a amplidão e a reflexão pessoal deste, é, no entanto, um poema/retrato onde da alegria ao sórdido, com ênfase na sensualidade, a vida decorre.

 

O desafio enunciado é triplo: comparar os retratos da cidade de final de oitocentos pintados por Gomes Leal e Cesário Verde, por um lado, e por outro a capital cosmopolita de início do século XXI, e encontrar tanto continuidades como roturas que dão a medida de quanto o nosso tempo é diferente do passado, e simultaneamente como nele radica.

(Nota: O poema de Cesário Verde encontra-se algures no blog, acessível aqui)

Lisboa

De certo, capital alguma do Ocidente
Tem mais afável sol, ou um céu mais clemente,
Mais colinas azuis, rio d’águas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pálidas crianças,
Mais igrejas e cães — e vargens, onde a esteira
Seja em tardes d’estio a flor da laranjeira!

A cidade é garrida e esbelta de manhã! —
É mais alegre então, mais límpida, mais sã.
Com certo ar virginal ostenta suas graças…
Há vida, confusão, murmúrios pelas praças.
— E, às vezes, em roupão, uma violeta bela
Vem regar o craveiro e assoma na janela.

A cidade é beata — e, às lúcidas estrelas,
O vicio, à noite, sai aos becos e às ruelas
Sorrindo, a perseguir burgueses e estrangeiros…
E à triste e dubia luz dos baços candeeiros,
— Em bairos imorais, onde se dão facadas —
Corre às vezes o sangue e o vinho nas calçadas.

As mulheres são gentis. — Umas altas, morenas,
Graves, sentimentais, amigas de novenas,
Ébrias de devoções, relêem as suas Horas.
— Outras fortes, viris, os olhos cor d’amoras,
Os lábios sensuais, cabelos bons, compridos,
— Às vezes, por enfado, enganam os maridos!

Os burgueses banais são gordos, chãos, contentes,
Amantes de cupido, egoistas, indolentes,
Graves nas procissões, nas festas, e nos lutos.
Bastante sensuais, bastante dissolutos,
Mas humildes cristãos!.. e, em místicos momentos,
— Tendo, ainda, crueis saudades dos conventos!

Viciosa ela se apraz num sono vegetal,
Adversa ao Pensamento e contrária ao Ideal.
— Mas, mau grado assim ser viciosa, egoista, à lua,
Como Nero também dá concertos na rua,
E, em noites de verão quando o luar consola,
— Põe ao peito a guitarra e a lírica viola.

No entanto a sua vida é quase intermitente,
Chafurda na inação, feliz, gorda, contente.
E, eclipsando as acções dos seus navegadores,
Abrilhanta a batota e as casas de penhores.
Faz guerra à Vida, à Acção, ao Ideal!.. e ao cabo
— É talvez a melhor amiga do Diabo!

in Claridades do Sul, segunda edição revista e aumentada, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1901.
Modernizei a ortografia.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Carlos Botelho (1899-1982), Lisboa e o Tejo; Domingo, 1935, da colecção do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNACC).

 

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Gomes Leal — Romantismo

29 Sexta-feira Jun 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Gomes Leal, Píerre-Auguste Renoir, Suzanne Valadon

A ironia cáustica de Gomes Leal (1848-1921) debruça-se no poema Romantismo sobre um traço distintivo da poesia romântica — a mulher e o sonho de a ter

…
Oh como é bela! — Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce e lânguido abandono,
Não sei que vago que nos faz cismar!…
…

 

E neste cismar a mulher ideal, o nosso homem-poeta sonha, em sucessivos transes, poder ser o herói sedutor de populares histórias românticas, qual D.Juan de Lord Byron:

…
Como eu quisera ser, nos sonhos dela,
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
…

 

ou o protagonista da grandeza da paixão do Rei de Tule que a balada de Goethe imortalizou:
 …
Como eu deitara a minha taça d’ouro,
Por causa dela, duma torre alta!…
…

 

 

A paixão romântica, embrulhada na fantasia de uma realidade sonhada é ainda moeda corrente nos nossos dias. Mudou o modelo da mulher ou do homem ideais, mas as juras de amor eterno e casamentos para a vida são ainda aspiração de multidões. E por mais que a realidade em redor o desminta, a fantasia leva o pensamento a considerar que isso só acontece aos outros. É a permanência dessa mentalidade romântica surgida nos seus detalhes com os alvores do século XIX, que aqui se revela, e neste poema Gomes Leal aflora de forma crítica.

Ao longo do poema percorremos um cenário entre a trivialidade material e a grandiloquência que a imaginação permite. A ironia transparece na vulgaridade do quadro em que toda esta grandeza imaginada decorre: a observação indiscreta da intimidade de uma jovem mulher através da janela de casa:

 

Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
…
Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seus gestos vários,
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!…

 

 

E todo o sonhar romântico termina na banalidade dos dias:

…
Um cravo murcha, numa jarra, a um canto,
— E as aves voam, debicando o alpiste.

 

Traz este poema em si, além do circunstancialismo do seu assunto, uma chamada de atenção para o que muitas vezes é atitude de vida: a procrastinação plasmada no pendor contemplativo do que se deseja em detrimento da acção para o conseguir, e aqui caricaturado com benévola bonomia. Ter disso consciência é já parte do caminho feito para a vencer.
E agora, leitor, deixo-lhe o poema total:

 

 

Romantismo

Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
Eu amo vê-la, sedutora e bela,
— Longos cabelos sobre os ombros nus.

Oh como é bela! e como a fico a olhar,
Dos seus cabelos desatando a fita!…
Lembram-me as virgens que do austero Eremita
Vinham as noites de oração tentar.

Oh como é bela! — Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce e lânguido abandono,
Não sei que vago que nos faz cismar!…

Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seus gestos vários,
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!…

Como eu quisera ser, nos sonhos dela,
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
Pirata mouro, em galeões à vela,
Com minaretes sob o céu do Iran!…

Como eu quisera — e que vontade intensa! —
Só pelo brilho dessa longa trança,
Ser cavaleiro de invencível lança,
Ou rei normando duma ilha imensa!…

Como eu quisera, no seu pensamento,
Ser o rei bardo no rochedo duro,
E ambos, fugindo, recortado vento,
Sobre a garupa dum cavalo escuro!…

Se me morresse, que comprido choro!
Como vergara sob a Cruz de Malta!
Como eu deitara a minha taça d’ouro,
Por causa dela, duma torre alta!…

………………………………………………………

E assim por ela fico preso, enquanto
O sol se esconde no ocidente triste…
Um cravo murcha, numa jarra, a um canto,
— E as aves voam, debicando o alpiste.

 

in Claridades do Sul, segunda edição revista e aumentada, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1901.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Retrato de mulher (Suzanne Valadon).
Suzanne Valadon (1865-1938) além de modelo em algumas das mais famosas pinturas de Renoir, foi, depois de ser empregada de mesa de café e acrobata, modelo e amante de pintores do impressionismo. Ensinada por Degas (1834-1917),  começou a pintar, sendo mais tarde a primeira mulher admitida na  Société Nationale des Beaux-Arts. Foi também e a mãe do pintor Maurice Utrillo (1883-1955).
Deixo a seguir a imagem de uma sua pintura de 1923, La chambre bleue, a lembrar Matisse (1869-1954), pertença da colecção do Centro Georges Pompidou.

 

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Gomes Leal — A Sesta do Sr. Glória

01 Quarta-feira Nov 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Gomes Leal, Toulouse-Lautrec

Gomes Leal (1848-1921) dá-nos em  A Sesta do Sr. Glória, com bonomia pontuada de acentos irónicos, marca de água da sua poesia não panfletária, um retrato de família burguesa de final do século XIX, saboreando o seu bem-estar e contentamento de viver.

Não é matéria frequente da poesia realista de final de oitocentos o tom, despido de considerações ideológicas ou de moralidade, tão só deixando ver, qual pintura de género, uma particular ”joie de vivre”.

O poema traz uma saborosa evocação de uma sociedade extinta, e, ao leitor de hoje, o conhecimento histórico da sociedade e costumes da época, permite, talvez, os juízos de valor que o poeta se inibe.

 

A Sesta do Senhor Glória

É no fim do jantar. — Deram três horas
No bom relógio antigo dos avós.
E o senhor Glória pega numa noz
Com um ar de quem trata com senhoras.

A casa de jantar toda pintada
E o estuque cheio d’aves, de paisagens,
De ninfas, prados, d’águas, de boscagens,
Tem uma forma antiga e recatada.

D’involta com seus goles de Madeira
Saboreia a senhora o seu café.
E ao lado, um filho rúbido, de pé,
Parece um pregador sobre a cadeira.

No colo da matrona dorme um gato
No melhor sono cómodo do mundo,
Enquanto, em baixo, um cão grave e profundo,
Contempla uns restos, que inda estão num prato.

O senhor Glória fala, chocarreiro,
Do seu cunhado Aleixo de Miranda.
Lá fora, um papagaio num poleiro,
Diz cousas aos burgueses, da varanda.

Com um ar meio cómico e boçal,
Um sisudo criado atrás, de pé,
De vez em quando fala menos mal:
— O senhor Glória aspira o seu café.

Muito tempo assim ficam nesse estado
De santa sonolência e beatitude,
Mais que assaz conhecido da virtude,
quando tem digerido e bem jantado

No entanto, o senhor Glória, olhos dormentes,
Contempla, na parede, os bons pastores,
Confidentes fiéis dos seus amores,
— Que outrora hão já sorrido aos seus parentes.

Duas pastoras falam com poesia,
Numa vereda de álamos umbrosos,
E isto acorda-lhe os tempos virtuosos…
Que era hora de jantar era ao meio dia!

Belos tempos — pensa ele — de virtude,
De glória, amor, coragem, fé ardente,
De longas procissões e de saúde,
De singeleza e paz — vida contente!

E o senhor Glória, aqui, num travesseiro,
Deita a cabeça, de pensar prostrado.
— O papagaio ri no seu poleiro.
— E a senhora sorri para o criado.

in  Claridades do Sul, segunda edição revista e aumentada, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1901.

Tal como no poema a certa altura se refere — No entanto, o senhor Glória, olhos dormentes, / Contempla, na parede, os bons pastores, / Confidentes fiéis dos seus amores,  — a vida por esta época para os senhores endinheirados não se limitava a esta placidez doméstica; e isso mostra a imagem a abrir o artigo. Trata-se do fragmento de um poster de Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), Reine de Joie, de 1892.
Contemporâneo próximo deste Sr. Glória, neste poster observamos não um jantar de família, mas uma ceia, talvez tardia, numa noite de escapadela, deixando a senhora entregue às suas ocupações.

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Cantiga do campo — poema de Gomes Leal para canção dos Madredeus

14 Quinta-feira Jul 2016

Posted by viciodapoesia in Convite à música, Poesia Antiga

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Gomes Leal

Millet 1857 500pxA música de Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão para o poema de Gomes Leal (1848-1921) Cantiga do Campo capta a atmosfera luminosa deste, simultaneamente ensolarada e fresca, qual a da natureza pelo verão, servida por uma refinada orquestração.

Jean-Francois Millet 09 500px

O mundo rústico de que o poema fala está extinto, mas o desejo do contacto com a natureza assalta as gentes urbanas nestes dias de verão que incendeiam corpos e almas, levando multidões atrás da música em festivais com a paisagem silvestre quase intocada por cenário.

A música no seu mistério de devolver a harmonia ao humano é o catalisador destes parêntesis numa vida por demais enfeudada à vertigem das exigências de todos os dias.

Woodstock poster

Antes de transcrever o poema, registo além das variadas versões pelos Madredeus a belíssima e original interpretação da canção por Mylene, cantora brasileira que em 2007 gravou um esplêndido disco com diversas canções dos Madredeus.

As canções tanto nas interpretações dos Madredeus como de Mylene encontram-se on-line nos lugares do costume.

Jean-Francois Millet 02 450px

 

Cantiga do Campo

 

 

Por que andas tu mal comigo

Ó minha doce trigueira?

Quem me dera ser o trigo

Que, andando, pisas na eira!

 

Quando entre as mais raparigas

Vais cantando entre as searas,

Eu choro ao ouvir-te as cantigas

Que cantas nas noites claras!

 

Os que andam na descamisa

Gabam a viola tua,

Que, às vezes, ouço na brisa

Pelos serenos da lua.

 

E falam com tristes vozes

Do teu amor singular

Àquela casa onde cozes,

Com varanda para o mar.

 

Por isso nada me medra,

Ando curvado e sombrio!

Quem me dera ser a pedra

Em que tu lavas no rio!

 

E andar contigo, ó meu pomo

Exposto às chuvas e aos sois!

E uma noite morrer como

Se morrem os rouxinóis!

 

Morrer chorando, num choro

Que mais as magoas consola,

Levando só o tesouro

Da nossa triste viola!

 

Por que andas tu mal comigo?

Ó minha doce trigueira?

Quem me dera ser o trigo

Que, andando, pisas na eira!

 

in Gomes Leal, Claridades do Sul, Braz Pinheiro Editor, Lisboa, 1875.

Modernizei a ortografia.

Jean-Francois Millet 03 500px

 

Acompanham o artigo imagens de pinturas de Jean-Francois Millet (1814-1875) entremeadas com a imagem do poster original do Festival de Woodstock em 1969, pontapé de saída para os festivas de verão em ambiente rural.

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A mulher imaginada em sonetos de Gomes Leal

21 Sexta-feira Fev 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Gomes Leal, Mary Cassatt, Paul Gauguin

Mary Cassatt

Bon-vivant que foi, e ao que consta bem sucedido com as mulheres até à maturidade, Gomes Leal (1848-1921) nunca casou, e teve um final de vida trágico que faz do homem um personagem de romance soberbo. Enquanto poeta, a sua poesia, quando não ligada a assuntos de actualidade, mantém a atracção do inesperado numa oficina sem falhas: era um versificador inspirado tanto no soneto como em longos poemas narrativos.

Abundam na poesia de Gomes Leal as imagens de mulher sonhada ou desejada. Escolho hoje três sonetos onde na variedade de cenários o sonho da mulher surge. Une-os o desejo do poeta de fruir uma virgindade casta e sonhando o prazer do pecado, como à época era entendido. Enquadra esta poesia a mentalidade burguesa de final do século XIX, quando foi sucesso sem limites, e dela nos dá uma leitura esclarecedora.

 

Abro com A Jovem Miss:

 

A Jovem Miss

 

Ela é tão loura, lírica, franzina,

Tão mimosa, quieta, virginal,

Como uma bela virgem dum missal,

Toda dourada, e preciosa, e fina.

 

Não há graça mais casta e feminina

Do que a dela! — Seu riso angelical

Cria em nós todo um mundo de moral,

Melhor que tudo o que Platão ensina!

 

Por isso, e, pela sua castidade,

Deve ser gozo intenso, na verdade,

Sentir fundir-se em nós seus olhos régios…

 

E o gozo de a beijar, trémula, amante,

Deve ser quasi estranho! — e semelhante

Ao de fazer terríveis sacrilégios.

 

Sonhada a virgem angelical a quem apetece beijar, trémula, amante, passemos ao gosto do exótico em dois devaneios em forma de soneto. Em ambos, a seriedade e convicção com que o assunto se desenvolve é rematada de forma inesperada com o banal da realidade e das suas necessidades.

Mulher com flores nas mãos 1899

Phantasias

 

Tenho, às vezes, desejos delirantes

De a todos te roubar, meu lírio amado!…

E levar-te, em voo arrebatado,

Aos países fantásticos, distantes.

 

À Índia, China, ou ao Iran, e os meus instantes

Passá-los a teus pés, grave e encruzado,

Num tapete chinês aveludado,

Com flores ideais e extravagantes.

 

Nossa vida seria, — ó pomba minha! —

Mais leve do que a asa da andorinha,

E, nas horas calmosas, eu e tu…

 

Olhando o mar sereno, o mar unido,

Comeríamos os dois arroz cozido…

— Embalados num junco de bambu!

 

Se neste soneto passamos da fantasia etérea ao arroz cozido, vejamos onde nos leva A Selvagem:

Te Nave Nave Fenua 1892

A Selvagem

 

Às vezes, como os grandes fantasistas,

Sinto o desejo intenso das viagens…

E ir sozinho habitar entre os selvagens,

Como num ermo os ásperos trapistas.

 

As grandes, vastas, límpidas paisagens,

Que sabem ver os imortais artistas…

Teriam novos tons, novas imagens,

Longe do mundo avaro e as suas vistas!

 

Com uma virgem — flor dessas montanhas —

Entre os mil sons das árvores estranhas,

Dos coqueiros, bambús … fôra feliz!…

 

Dormiria em seus braços nus, lustrosos,

E ouviria, entre uns beijos voluptuosos,

— Tilintar-lhe as argolas do nariz.

Quando te casarás 1892

Os sonetos foram transcritos do livro Claridades do Sul, 2ª edição (revista e aumentada), Lisboa, 1901.

Modernizei a ortografia sempre que a eufonia do verso não saiu prejudicada. Conservei a pontuação da edição.

 

Iconografia

À bela jovem, e talvez virgem, pintada por Mary Cassatt no início do artigo, acrescentei as taitianas pintadas por Paul Gauguin, razão da troca de um futuro de banqueiro em França pela vida de paraíso nos confins do Pacífico, materializando talvez fantasias equivalentes aos devaneios poéticos que acabámos de ler.

Contos primitivos 1902

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Gomes Leal — três poemas de História de Jesus

30 Quarta-feira Out 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Gomes Leal, Paul Gauguin

gauguin cristo amareloTermino por agora a visita à poesia de assunto religioso católico com três poemas de História de Jesus, de Gomes Leal (1848-1921) nos quais se relata a crucificação e morte de Jesus.

A história da vida de Jesus é nesta obra contada com a desenvoltura versificatória apanágio do poeta, e a poesia salta, episódio a episódio, transformando-a numa narrativa de encantamento em que as matérias de fé passam a segundo plano.

Abro com o rouxinol na cruz que canta na agonia de Cristo lembrando o Amor, o Céu. quando tudo chora em seu redor. Falar da crucificação de Jesus com a magia deste O Rouxinol do Calvário é provavelmente caso único e suponho que o episódio é apócrifo em relação à narrativa bíblica.

Segue-se-lhe a descrição das trevas em que a terra mergulhou enquanto Cristo agonizava. E nele o verso transmite o terror que a fé reclama: Fenderam-se os rochedos, com ruídos. /Um singular terror gelou os ossos.

Termino com a estocada final do soldado romano no Cristo já morto. Neste poema a doçura da mensagem de Jesus é posta em contraste com o gratuito da violência dos seus carrascos:

…

caiu enfim chagado, justiceiro, / ainda, ainda perdoando ao mundo …

…

um soldado romano vendo-o exposto, / e já morto na Cruz, lívido o rosto, / com um golpe de lança o trespassou.

 

Entrego-vos aos poemas

 

O Rouxinol do Calvário

Na noite que passou

o Cristo, no Calvário,

um rouxinol cantou

sobre a Cruz, solitário.

 

Os trigueiros soldados,

e os lirios de Salém,

perguntavam pasmados :

— Que voz canta tão bem ?

 

Como sentindo os males

das suas próprias penas,

vergavam-se nos cálix,

chorando, as açucenas.

 

Choravam os caminhos,

os dados, os cilícios,

a grinalda de espinhos,

e a esponja dos suplícios.

 

Choravam os sem luz,

e os rijos peitos bravos.

Começavam na cruz

a vacilar os cravos.

 

Pelo tranquilo espaço,

paravam as estrelas,

e o vagaroso passo

as mudas sentinelas.

 

Os peitos desumanos

ressentiam mudanças.

Deixavam os romanos

escorregar as lanças.

 

Assim cantou… cantou…

lembrando o Amor, o Céu.

Quando Jesus morreu,

do lenho, enfim, voou ! …

 

 

Trevas

Rasgou se o véu do Templo de alto a baixo,

Cortou o vento o ar como um açoite.

Rugiram os leões, e o eterno facho

do dia se eclipsou. — E fez-se a Noite.

 

Fenderam-se os rochedos, com ruídos.

Um singular terror gelou os ossos

dos legionários trágicos, vencidos

da confusão, do espanto, e dos destroços.

 

O morto surge e mais o seu sudário,

trazendo o assombro do final segredo.

O povo da Judeia do santuário

foi-se esconder na treva — e teve medo.

 

As violetas murcharam sobre a haste.

E uma voz singular, lúgubre, estranha,

soluçou pela trágica montanha :

— «Meu Pai! Meu Pai ! porque me abandonaste?»

 

 

O Último Golpe de Lança

Quando ele enfim morrendo, ele, o cordeiro,

rola mansa no ar calado e imundo,

pendeu, bem como um lírio moribundo,

sobre a haste do trágico madeiro…

 

quando, lançando o espirito profundo,

ao reino belo, grande, verdadeiro.

caiu enfim chagado, justiceiro,

ainda, ainda perdoando ao mundo …

 

um soldado romano vendo-o exposto,

e já morto na Cruz, lívido o rosto,

com um golpe de lança o trespassou.

 

Saiu daquela chaga sangue e água:

— Sangue que inda quis dar a tanta mágoa.

— Água de pranto ainda que chorou.

 

Abre o artigo o Cristo amarelo pintado por Paul Gauguin (1848-1903) em 1889, pouco depois da composição desta História de Jesus (1883). Noutra oportunidade virá à conversa a forma como os escritores simbolistas franceses olharam a pintura bretã de Gauguin e a entenderam como a materialização dos seus ideais de arte. Aqui surge tão só como uma ideia de Cristo que a arte desmaterializa.

Como curiosidade e em nota de rodapé registe-se que Gomes Leal era apenas um dia mais velho que Gauguin. Um nasceu a 6 de Junho de 1848, o outro a 7 de Junho de 1848.

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