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Cabe-nos a todos, cedo ou tarde, cuidar de familiares. Para o processo de envelhecimento que nos espera, podemos aprender nos outros comportamentos e estados de espírito, que conduzam a atitudes essenciais para a fruição da vida, o melhor possível, enquanto ela durar.
No poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Como a morte se infiltra, que à frente transcrevo, é um desencantado e pungente relato de desistência que acompanhamos. Embora seja frequente, não tem que ser assim.
Quando a lucidez permanece mas a autonomia desapareceu, o espectáculo dos lares de terceira idade, quais salas de espera de Deus, para usar uma expressão terrível que encontrei algures, mostra tudo o que não deve ser viver o tempo, já sem tempo para novos sonhos, mas mais que suficiente para fruir um quotidiano benigno.
O entusiasmo é sempre possível, e a alegria de estar vivo é algo que cuidadosamente se rega, e todos os dias se faz renascer. Sei do que falo. Tenho ao meu lado um exemplo vivo: à beira dos noventa anos estreou hoje com o maior entusiasmo, uma Scooter eléctrica que lhe permitirá reganhar uma mobilidade há muito perdida. E a sensação de que a aventura pode sempre recomeçar é um motor irresistível, tal como a experiência do novo é sempre um desafio que vale a pena.
Depois disto dito, aqui fica o exemplo a não seguir:
Como a morte se infiltra
Certo dia, não se levanta,
porque quer demorar na cama.
No outro dia ele diz porquê:
é porque lhe dói algum pé.
No outro dia o que dói é a perna,
e nem pode apoiar-se se nela.
Dia de dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.
Dia dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.
Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.
Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,
outra semana sempre adiada,
que eu não vê por que apressá-la.
Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.
Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.
Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.
Quem deixou-o, a respiração?
Muda de cama. Eis seu caixão.
Poema publicado em Agrestes (1981-1985), e transcrito de A educação pela pedra e depois, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.
Acompanham o artigo imagens de duas pinturas: a abrir, de Arshile Gorky (1904-1948) O pintor e sua mãe; a seguir de Paul Gauguin (1848-1903), No jardim do hospital de Arles.