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João Cabral de Melo Neto — A mulher e a casa

03 Quarta-feira Jan 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Geza Voros, João Cabral de Melo Neto

Sentir a casa como mulher, descobri-la aos poucos, e desejá-la cada vez mais, é o originalíssimo feito de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) no poema A mulher e a casa:
…
pelos espaços de dentro: / seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro / em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem / estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas / ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem / efeito igual ao que causas:
e vontade de corrê-la / por dentro, de visitá-la.

 

Talvez apenas uma paixão simultânea de engenheiro e poeta conduza a um poema assim, mas é de todos o simultâneo prazer de descoberta e aconchego, quando acontece o encontro com uma casa que se cola a nós como segunda pele, qual mulher a quem o amor nos entregou para sempre.

Ao longo da vida vivemos diferentemente as casas por onde passamos, tal como é diferente a vivência com cada uma das mulheres que encontrámos. De todas fica um sabor que nos acompanha, e fez de nós umas vezes seres gregários, outras vezes leves penas transportadas pelo vento.

 

A mulher e a casa

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra:
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
e vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

 

Poema transcrito de A educação pela pedra e depois, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Geza Voros (1897-1957), Mulher num quarto com blusa de riscas.

 

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Como a morte se infiltra — poema de João Cabral de Melo Neto

10 Terça-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Arshile Gorky, João Cabral de Melo Neto, Paul Gauguin

Cabe-nos a todos, cedo ou tarde, cuidar de familiares. Para o processo de envelhecimento que nos espera, podemos aprender nos outros comportamentos e estados de espírito, que conduzam a atitudes essenciais para a fruição da vida, o melhor possível, enquanto ela durar.

No poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Como a morte se infiltra, que à frente transcrevo, é um desencantado e pungente relato de desistência que acompanhamos. Embora seja frequente, não tem que ser assim.

Quando a lucidez permanece mas a autonomia desapareceu, o espectáculo dos lares de terceira idade, quais salas de espera de Deus, para usar uma expressão terrível que encontrei algures, mostra tudo o que não deve ser viver o tempo, já sem tempo para novos sonhos, mas mais que suficiente para fruir um quotidiano benigno.

O entusiasmo é sempre possível, e a alegria de estar vivo é algo que cuidadosamente se rega, e todos os dias se faz renascer. Sei do que falo. Tenho ao meu lado um exemplo vivo: à beira dos noventa anos estreou hoje com o maior entusiasmo, uma Scooter eléctrica que lhe permitirá reganhar uma mobilidade há muito perdida. E a sensação de que a aventura pode sempre recomeçar é um motor irresistível, tal como a experiência do novo é sempre um desafio que vale a pena.
Depois disto dito, aqui fica o exemplo a não seguir:

 

 

 

Como a morte se infiltra

 

Certo dia, não se levanta,
porque quer demorar na cama.

No outro dia ele diz porquê:
é porque lhe dói algum pé.

No outro dia o que dói é a perna,
e nem pode apoiar-se se nela.

Dia de dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.

Dia dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.

Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.

Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,

outra semana sempre adiada,
que eu não vê por que apressá-la.

Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.

Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.

Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.

Quem deixou-o, a respiração?
Muda de cama. Eis seu caixão.

 

 

Poema publicado em Agrestes (1981-1985), e transcrito de A educação pela pedra e depois, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.

Acompanham o artigo imagens de duas pinturas: a abrir, de Arshile Gorky (1904-1948) O pintor e sua mãe; a seguir de Paul Gauguin (1848-1903), No jardim do hospital de Arles.

 

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Futebol e poesia em João Cabral de Melo Neto

19 Quinta-feira Jan 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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João Cabral de Melo Neto

futebol-serigrafia-500pxO fatigante gesticular em “futebolez” que enche as televisões encobre e às vezes faz esquecer a lúdica beleza que a bola consigo traz. Não sendo atacado de clubite vejo com prazer um bem disputado jogo de futebol. Em outros jogos de bola perde-se a surpreendente magia que de súbito a criatividade de um jogador de génio pode fazer surgir do movimento de ponta do pé e bola.

 

O negócio financeiro à volta do futebol, com o seu calculismo, faz com que esses momentos sejam mais e mais raros. Resta, para quem a tem, a memória de tempo diferente recheado dessa magia, e que fez lendário o futebol brasileiro, como recorda o poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) que à frente transcrevo.

 

Mas o poema vai muito para além da evocação de memória do título, revela o segredo por detrás da magia da bola no pé que se faz Futebol: dá conta da volúpia do jogo e das qualificações necessárias para a fazer desabrochar:

 

 

[a bola]
…
é um utensílio semivivo,
de reacções próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.

 

 

As astúcias de mão que um pé genial consegue, são, afinal, a revelação que acima referi.

 

 

 

Segue-se a totalidade do poema.

 

 

 

O Futebol Brasileiro Evocado da Europa

 

A bola não é a inimiga
como o touro numa corrida;
e embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reacções próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.

 

 

Transcrito de A educação pela pedra e depois, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.

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