Etiquetas
Termino por agora a visita à poesia de assunto religioso católico com três poemas de História de Jesus, de Gomes Leal (1848-1921) nos quais se relata a crucificação e morte de Jesus.
A história da vida de Jesus é nesta obra contada com a desenvoltura versificatória apanágio do poeta, e a poesia salta, episódio a episódio, transformando-a numa narrativa de encantamento em que as matérias de fé passam a segundo plano.
Abro com o rouxinol na cruz que canta na agonia de Cristo lembrando o Amor, o Céu. quando tudo chora em seu redor. Falar da crucificação de Jesus com a magia deste O Rouxinol do Calvário é provavelmente caso único e suponho que o episódio é apócrifo em relação à narrativa bíblica.
Segue-se-lhe a descrição das trevas em que a terra mergulhou enquanto Cristo agonizava. E nele o verso transmite o terror que a fé reclama: Fenderam-se os rochedos, com ruídos. /Um singular terror gelou os ossos.
Termino com a estocada final do soldado romano no Cristo já morto. Neste poema a doçura da mensagem de Jesus é posta em contraste com o gratuito da violência dos seus carrascos:
…
caiu enfim chagado, justiceiro, / ainda, ainda perdoando ao mundo …
…
um soldado romano vendo-o exposto, / e já morto na Cruz, lívido o rosto, / com um golpe de lança o trespassou.
Entrego-vos aos poemas
O Rouxinol do Calvário
Na noite que passou
o Cristo, no Calvário,
um rouxinol cantou
sobre a Cruz, solitário.
Os trigueiros soldados,
e os lirios de Salém,
perguntavam pasmados :
— Que voz canta tão bem ?
Como sentindo os males
das suas próprias penas,
vergavam-se nos cálix,
chorando, as açucenas.
Choravam os caminhos,
os dados, os cilícios,
a grinalda de espinhos,
e a esponja dos suplícios.
Choravam os sem luz,
e os rijos peitos bravos.
Começavam na cruz
a vacilar os cravos.
Pelo tranquilo espaço,
paravam as estrelas,
e o vagaroso passo
as mudas sentinelas.
Os peitos desumanos
ressentiam mudanças.
Deixavam os romanos
escorregar as lanças.
Assim cantou… cantou…
lembrando o Amor, o Céu.
Quando Jesus morreu,
do lenho, enfim, voou ! …
Trevas
Rasgou se o véu do Templo de alto a baixo,
Cortou o vento o ar como um açoite.
Rugiram os leões, e o eterno facho
do dia se eclipsou. — E fez-se a Noite.
Fenderam-se os rochedos, com ruídos.
Um singular terror gelou os ossos
dos legionários trágicos, vencidos
da confusão, do espanto, e dos destroços.
O morto surge e mais o seu sudário,
trazendo o assombro do final segredo.
O povo da Judeia do santuário
foi-se esconder na treva — e teve medo.
As violetas murcharam sobre a haste.
E uma voz singular, lúgubre, estranha,
soluçou pela trágica montanha :
— «Meu Pai! Meu Pai ! porque me abandonaste?»
O Último Golpe de Lança
Quando ele enfim morrendo, ele, o cordeiro,
rola mansa no ar calado e imundo,
pendeu, bem como um lírio moribundo,
sobre a haste do trágico madeiro…
quando, lançando o espirito profundo,
ao reino belo, grande, verdadeiro.
caiu enfim chagado, justiceiro,
ainda, ainda perdoando ao mundo …
um soldado romano vendo-o exposto,
e já morto na Cruz, lívido o rosto,
com um golpe de lança o trespassou.
Saiu daquela chaga sangue e água:
— Sangue que inda quis dar a tanta mágoa.
— Água de pranto ainda que chorou.
Abre o artigo o Cristo amarelo pintado por Paul Gauguin (1848-1903) em 1889, pouco depois da composição desta História de Jesus (1883). Noutra oportunidade virá à conversa a forma como os escritores simbolistas franceses olharam a pintura bretã de Gauguin e a entenderam como a materialização dos seus ideais de arte. Aqui surge tão só como uma ideia de Cristo que a arte desmaterializa.
Como curiosidade e em nota de rodapé registe-se que Gomes Leal era apenas um dia mais velho que Gauguin. Um nasceu a 6 de Junho de 1848, o outro a 7 de Junho de 1848.