Etiquetas
A ironia cáustica de Gomes Leal (1848-1921) debruça-se no poema Romantismo sobre um traço distintivo da poesia romântica — a mulher e o sonho de a ter
…
Oh como é bela! — Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce e lânguido abandono,
Não sei que vago que nos faz cismar!…
…
E neste cismar a mulher ideal, o nosso homem-poeta sonha, em sucessivos transes, poder ser o herói sedutor de populares histórias românticas, qual D.Juan de Lord Byron:
…
Como eu quisera ser, nos sonhos dela,
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
…
ou o protagonista da grandeza da paixão do Rei de Tule que a balada de Goethe imortalizou:
…
Como eu deitara a minha taça d’ouro,
Por causa dela, duma torre alta!…
…
A paixão romântica, embrulhada na fantasia de uma realidade sonhada é ainda moeda corrente nos nossos dias. Mudou o modelo da mulher ou do homem ideais, mas as juras de amor eterno e casamentos para a vida são ainda aspiração de multidões. E por mais que a realidade em redor o desminta, a fantasia leva o pensamento a considerar que isso só acontece aos outros. É a permanência dessa mentalidade romântica surgida nos seus detalhes com os alvores do século XIX, que aqui se revela, e neste poema Gomes Leal aflora de forma crítica.
Ao longo do poema percorremos um cenário entre a trivialidade material e a grandiloquência que a imaginação permite. A ironia transparece na vulgaridade do quadro em que toda esta grandeza imaginada decorre: a observação indiscreta da intimidade de uma jovem mulher através da janela de casa:
Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
…
Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seus gestos vários,
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!…
E todo o sonhar romântico termina na banalidade dos dias:
…
Um cravo murcha, numa jarra, a um canto,
— E as aves voam, debicando o alpiste.
Traz este poema em si, além do circunstancialismo do seu assunto, uma chamada de atenção para o que muitas vezes é atitude de vida: a procrastinação plasmada no pendor contemplativo do que se deseja em detrimento da acção para o conseguir, e aqui caricaturado com benévola bonomia. Ter disso consciência é já parte do caminho feito para a vencer.
E agora, leitor, deixo-lhe o poema total:
Romantismo
Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
Eu amo vê-la, sedutora e bela,
— Longos cabelos sobre os ombros nus.
Oh como é bela! e como a fico a olhar,
Dos seus cabelos desatando a fita!…
Lembram-me as virgens que do austero Eremita
Vinham as noites de oração tentar.
Oh como é bela! — Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce e lânguido abandono,
Não sei que vago que nos faz cismar!…
Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seus gestos vários,
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!…
Como eu quisera ser, nos sonhos dela,
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
Pirata mouro, em galeões à vela,
Com minaretes sob o céu do Iran!…
Como eu quisera — e que vontade intensa! —
Só pelo brilho dessa longa trança,
Ser cavaleiro de invencível lança,
Ou rei normando duma ilha imensa!…
Como eu quisera, no seu pensamento,
Ser o rei bardo no rochedo duro,
E ambos, fugindo, recortado vento,
Sobre a garupa dum cavalo escuro!…
Se me morresse, que comprido choro!
Como vergara sob a Cruz de Malta!
Como eu deitara a minha taça d’ouro,
Por causa dela, duma torre alta!…
………………………………………………………
E assim por ela fico preso, enquanto
O sol se esconde no ocidente triste…
Um cravo murcha, numa jarra, a um canto,
— E as aves voam, debicando o alpiste.
in Claridades do Sul, segunda edição revista e aumentada, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1901.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Retrato de mulher (Suzanne Valadon).
Suzanne Valadon (1865-1938) além de modelo em algumas das mais famosas pinturas de Renoir, foi, depois de ser empregada de mesa de café e acrobata, modelo e amante de pintores do impressionismo. Ensinada por Degas (1834-1917), começou a pintar, sendo mais tarde a primeira mulher admitida na Société Nationale des Beaux-Arts. Foi também e a mãe do pintor Maurice Utrillo (1883-1955).
Deixo a seguir a imagem de uma sua pintura de 1923, La chambre bleue, a lembrar Matisse (1869-1954), pertença da colecção do Centro Georges Pompidou.