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vicio da poesia

Tag Archives: Bernardim Ribeiro

Saudade! Gosto amargo de infelizes

11 Segunda-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

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Almeida Garrett, António Botto, Bernardim Ribeiro, Bernardo de Passos, Fernando Pessoa, Geza Voros, Marquesa de Alorna, Sebastião da Gama

Saudade, que vos farei?
Pois vos não posso deixar,
por descanso vos busquei:
achei-vos para cansar.
…
(*)

 

A saudade, esse impalpável desejo do que se perdeu, por nós anda, associado à tristeza e ao desgosto.
Subtil e imprecisa, é a palavra perfeita para o complexo de sentimentos que nos assaltam no tempo, ao avivar de recordações e memórias, de pessoas, acontecimentos e lugares, com quem e onde fomos felizes.

Ó sino da minha aldeia,
…
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
(**)

 

A saudade passa na poesia sem cessar, por vezes de forma consciente e explícita. São sem fim os poemas onde ela transparece.
Se titulei o artigo com um verso de um poema de Almeida Garrett (1799-1854):

Saudade! Gosto amargo de infelizes.
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
— Mas dor que tem prazeres — Saudade!

 

agora recuo um pouco no tempo, à poesia de métrica precisa, melodia irresistível, e pendor filosofante da Marquesa de Alorna (1750-1839), de quem não há muito trouxe ao blog uma glosa sobre a saudade.

 

Marquesa de Alorna — Sem título

Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.

 

Quando a memória o consente, nem sempre a saudade será tristeza, o que Sebastião da Gama (1924-1952) capta no poema Lembrança:

 

Lembrança

Foi naquela tarde,
já distante…

Mas foi tão nítido e tão vivo,
Amor!, o beijo que me deste,
que não consegue ser saudade.

Flor cálida, vermelha flor tenrinha
que nos lábios contentes me deixaste…

Triste, já o Outono se avizinha.

Só essa flor não quer tombar da haste…

 

Deixo-o agora, leitor, com dois poemas em que saudade e melodia do verso se enlaçam, ajudando com isso a sossegar as almas que a saudade atravessa.

Primeiro um poema de Bernardo de Passos (1876-1930), deliciosa brincadeira à volta da palavra pena: pena (desgosto) e pena (revestimento das aves):

 

Saudades…

Saudades de amor são penas
que nascem do coração…
É como a pena das aves,
quanto mais, mais brandas são!

Meu coração fez um ninho
como o das aves, perfeito,
juntando todas as penas
de que ele me encheu o peito…
E nesse ninho, a sonhar,
dorme, assim, horas serenas,
como dorme um passarinho
sobre o seu ninho de penas…

 

E por fim, uma canção de António Botto (1897-1959) escrita com uma mestria de sabor popular:

 

Canção

De saudades vou morrendo
E na morte vou pensando;
Meu amor, porque partiste
Sem me dizer até quando?
Na minha boca tão triste
Ó alegrias cantai!
Mas quem acode ao que eu digo?
— Enchei-vos d’água meus olhos,
Enchei-vos d’água, chorai!

 

Encerro este longo artigo com esperança, esperança de que, qual flor, a saudade há-de murchar como anseia a Marquesa de Alorna neste poema final:

 

Saudade

A uma flor chamam Saudade,
Que é primor da natureza;
Mas a que nasce em meu peito
É produção da tristeza.

Enquanto a saraiva, os Notos
Destes gelados países
Açoutam as plantas, cresce,
Lança profundas raízes;

Mas se um dia, transplantada,
Outro terreno buscar,
Alívio terá meu peito,
E a saudade há-de murchar.

 

Notas:
(*) Atribuído a Bernardim Ribeiro no manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, (cód. 11353).
(**) Fernando Pessoa, 1ª publ. in Renascença. Lisboa: Fev. 1924.
Os restantes poemas encontra-os o leitor em A Saudade na Poesia Portuguesa, seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Portugália editora, 1967.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Geza Voros (1897-1957), Mulher em vermelho, de 1933.

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A depressão contada num poema do século XVI

09 Sábado Abr 2016

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Bernardim Ribeiro, Erich Heckel, Francisco Sá de Miranda

Erich Heckel - RetratoNada quero, tudo enjeito, / o maior bem me aborrece, / o prazer me entristece — assim começa o poema do século XVI português, de autor anónimo, que a seguir transcrevo.

Lido tal qual, este poderia ser o início de conversa numa qualquer consulta a psicólogo. O desenvolvimento do poema provavelmente conduziria a diagnóstico de depressão, pois até consideração da hipótese de suicídio contém: se morro acaba o mal, / … / se vivo, o padecer / desta dor é tão mortal / que me não posso valer. Vemos assim que a depressão não será unicamente doença dos nossos dias.

Poema

 

Nada quero, tudo enjeito,

o maior bem me aborrece,

o prazer me entristece

e o viver, porque é sujeito

a quem dele assim se esquece:

se morro acaba o mal,

fim não queria ver;

se vivo, o padecer

desta dor é tão mortal

que me não posso valer.

 

Neste mal-estar repartido entre si e o desencanto do mundo, termino com um poema de Francisco Sá de Miranda (1481-1558) — Cantiga XXXVI — escrito pela mesma época. No entanto, com Sá de Miranda estamos completamente afastados de sintomas de depressão, apenas um infinito desconsolo: E já vivi de esperança /E agora de choro vivo!

 

Cantiga XXXVI

 

Entre temor e desejo,

Vã esperança e vã dor,

Entre amor e desamor

Meu triste coração vejo.

 

Nestes estremos, cativo

Ando, sem fazer mudança;

E já vivi de esperança

E agora de choro vivo!

Contra mim mesmo pelejo;

vem duma dor outra dor

e dum desejo maior

nasce outro môr desejo.

 

(Modernizei a ortografia; conservei môr cujo significado é maior segundo o dicionário de Moraes)

Nota bibliográfica

O poema de autor anónimo foi transcrito da edição Obras de Bernardim Ribeiro com organização e notas de Hélder Macedo e Maurício Matos, Editorial Presença, Lisboa, 2010. O original encontra-se no Cancioneiro de Ferrara, e integra um grupo de poemas anónimos que os autores da recolha classificam de Escola Bernardiniana.

O poema de Francisco Sá de Miranda foi transcrito de Poesias de Francisco Sá de Miranda, edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, reprodução fac-símile do exemplar com data de 1885 da Biblioteca Nacional, INCM, Lisboa, 1989.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Erich Heckel (1883-1970).

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Casar só uma mão ou a defesa do adultério segundo Bernardim Ribeiro

29 Quarta-feira Jun 2011

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Bernardim Ribeiro

Não sou casado, senhora,/…/ não casei o coração.

Assim começa uma cantiga de Bernardim Ribeiro (14?? – 15??) que é uma fascinante legitimação do adultério.

Casou o poeta antes de conhecer aquela que agora ama, e para justificar o desejo desta nova amada, serve-se do inesperado argumento de que afinal só casou uma mão:

Antes que vos conhecesse, / sem errar contra vós nada, / uma só mão fiz casada,

Assistimos ao longo da canção à apresentação das razões que legitimam o adultério, quais sejam:

Dizem que o bom casamento / se há de fazer de vontade.
…
se a outrem dei a mão, / dei a vós o coração.
…
Como, senhora, vos vi, / sem palavras de presente / na alma vos recebi, / onde estareis para sempre,

Por detrás destas conversas poéticas espreita sempre o que já sabemos,

O casar não fez mudança /… / nem me negou a esperança / do galardão esperado.

e tentando obtê-lo termina o poeta:

Não me engeiteis por casado, / que, se a outra dei a mão, / a vós dei o coração.

Segue-se a Cantiga na integra:

Cantiga

Não sou casado, senhora,
que ainda não dei a mão,
não casei o coração.

Antes que vos conhecesse,
sem errar contra vós nada,
uma só mão fiz casada,
sem que mais nisso metesse.
Dou-lhe que ela se perdesse!
solteiros e vossos são
os olhos e o coração.

Dizem que o bom casamento
se há de fazer de vontade.
Eu, a vós, a liberdade
vos dei, e o pensamento.
Nisto só me achei contento:
que, se a outrem dei a mão,
dei a vós o coração.

Como, senhora, vos vi,
sem palavras de presente
na alma vos recebi,
onde estareis para sempre,
não de palavra somente;
nem fiz mais que dar a mão,
guardando-vos o coração.

Casei-me com meu cuidado
e com vosso desejar.
Senhora, não sou casado,
não mo queirais acuitar!
que servir-vos e amar
me nasceu do coração
que tendes em vossa mão.

O casar não fez mudança
em meu antigo cuidado,
nem me negou a esperança
do galardão esperado.
Não me engeiteis por casado,
que, se a outra dei a mão,
a vós dei o coração.

Ó quão constante é entre os homens, independentemente das épocas, a dicotomia entre amor e casamento.

A versão transcrita do poema de Bernardim Ribeiro retirei-a da antologia Poesia de Amor organizada por José Régio e Alberto de Serpa, e publicada em 1945 pela Livraria Tavares Martins do Porto.

Sobre a biografia do poeta nada se sabe com exactidão ainda que pela net continuem a circular as fantasias que têm passado por dados biográficos do poeta.

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