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Erich Heckel - RetratoNada quero, tudo enjeito, / o maior bem me aborrece, / o prazer me entristece — assim começa o poema do século XVI português, de autor anónimo, que a seguir transcrevo.

Lido tal qual, este poderia ser o início de conversa numa qualquer consulta a psicólogo. O desenvolvimento do poema provavelmente conduziria a diagnóstico de depressão, pois até consideração da hipótese de suicídio contém: se morro acaba o mal, / … / se vivo, o padecer / desta dor é tão mortal / que me não posso valer. Vemos assim que a depressão não será unicamente doença dos nossos dias.

Poema

 

Nada quero, tudo enjeito,

o maior bem me aborrece,

o prazer me entristece

e o viver, porque é sujeito

a quem dele assim se esquece:

se morro acaba o mal,

fim não queria ver;

se vivo, o padecer

desta dor é tão mortal

que me não posso valer.

 

Neste mal-estar repartido entre si e o desencanto do mundo, termino com um poema de Francisco Sá de Miranda (1481-1558)Cantiga XXXVI — escrito pela mesma época. No entanto, com Sá de Miranda estamos completamente afastados de sintomas de depressão, apenas um infinito desconsolo: E já vivi de esperança /E agora de choro vivo!

 

Cantiga XXXVI

 

Entre temor e desejo,

Vã esperança e vã dor,

Entre amor e desamor

Meu triste coração vejo.

 

Nestes estremos, cativo

Ando, sem fazer mudança;

E já vivi de esperança

E agora de choro vivo!

Contra mim mesmo pelejo;

vem duma dor outra dor

e dum desejo maior

nasce outro môr desejo.

 

(Modernizei a ortografia; conservei môr cujo significado é maior segundo o dicionário de Moraes)

Nota bibliográfica

O poema de autor anónimo foi transcrito da edição Obras de Bernardim Ribeiro com organização e notas de Hélder Macedo e Maurício Matos, Editorial Presença, Lisboa, 2010. O original encontra-se no Cancioneiro de Ferrara, e integra um grupo de poemas anónimos que os autores da recolha classificam de Escola Bernardiniana.

O poema de Francisco Sá de Miranda foi transcrito de Poesias de Francisco Sá de Miranda, edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, reprodução fac-símile do exemplar com data de 1885 da Biblioteca Nacional, INCM, Lisboa, 1989.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Erich Heckel (1883-1970).