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Tag Archives: Francisco Sá de Miranda

Comigo me desavim… e mais poesia de Francisco Sá de Miranda

25 Sexta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Francisco Sá de Miranda, Perugino

Francisco Sá de Miranda (1481-1558) gozou em vida do apreço dos contemporâneos simultaneamente como homem e como poeta. Frequentemente voz austera contra os desmandos dos poderosos do mundo, e as suas sátiras em forma de carta com destinatário são o testemunho eloquente, foi, para a poesia que hoje nos toca, um penetrante observador das complexidades do eu no que aos afectos respeita. É famoso e permanece na memória de quem o leu, o verso:

Comigo me desavim
…

 

Tomara muitos poetas deixar para as gerações tão só um verso desta penetração reflexiva na economia da sua expressão, dando conta dos conflitos que tão frequentemente nos assaltam.

Faço agora uma curta visita a esta poesia. Com o propósito de aclarar algumas expressões antigas ou o sentido de algum verso, acompanho os poemas de uma que outra nota.

Sá de Miranda foi o introdutor em Portugal da forma poética soneto, depois duma demorada viagem por Itália com cuja produção se familiarizou.
Comecemos, pois, esta viagem com aquele que será, porventura, o seu soneto mais conhecido, e obra-prima da poesia portuguesa, O sol é grande, caem co’ a calma as aves.
Reflexão densa sobre as mudanças da vida tal como as mudanças do tempo. Só que, com estas, pelo seu carácter cíclico tudo se renova, mas na vida o envelhecimento é sem retorno.

 

Soneto

O sol é grande(1), caem co’ a calma(2) as aves
Do tempo em tal sazão(3) que soi(4) ser fria:
Esta água, que d’alto cai(5), acordar-me-ia
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó coisas todas vãs, todas mudaves
Qual é o coração que em vós confia?
Passando um dia vai, passa outro dia,
Incertos todos mais, que ao vento as naves!(6)

Eu vi já por aqui sombras e flores,
Vi águas e vi fontes e vi verdura,
As aves vi cantar todas d’amores.

Mudo e seco é já tudo e de mistura:
Também fazendo m’eu fui doutras cores(7)
E tudo o mais renova, isto é sem cura.

(1) Era Outono e a temperatura elevada
(2) Calor
(3) Estação do ano
(4) Costuma
(5) Perto de casa de Sá de Miranda existia uma cascata
(6) Como ao vento os navios
(7) Constata o próprio envelhecimento

 

Este soneto é a provável fonte de inspiração directa do famoso soneto de Camões: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, …

Seguem-se, para concluir a visita, trovas à maneira antiga, ou seja à maneira da poesia recolhida no Cancioneiro de Garcia de Resende.

Comecemos com uma comovente reflexão sobre as saudades de quem se ama: Todos estes campos cheios / são de saudade e pesar, /.
Quando a distância, por maior que seja não permite esquecer, — até quão longe se estende / o vosso poder em mim! — não há beleza em redor que se sobreponha à tristeza desse afastamento.
Estas reflexões vivem na Cantiga feita nos grandes campos de Roma a seguir transcrita:

 

Cantiga feita nos grandes campos de Roma

Por estes campos sem fim,
onde a vista assim se estende,
que verei, triste de mim,
pois ver-vos se me defende (1)?

Todos estes campos cheios
são de saudade e pesar,
que vem para me matar
debaixo de céus alheios.
Em terra estranha e em ar,
mal sem meio e mal sem fim,
dor que ninguém não entende,
até quão longe se estende
o vosso poder em mim!

(1) se me defende – me é proibido

 

Na segunda trova reflecte o poeta sobre a vida despreocupada e as suas consequências: Tornou-se-me tudo em vento, / após tormento e tormento, / que eu passei cuidando em al(1);
Nela realça, com elegante concisão, como as suas consequências chegam bem antes da interiorização das más escolhas: enfim veo cedo o mal / e tarde o conhecimento.
Mas tem mais o poema: depois de olhar para si, o poeta olha em redor e diz: Vejo vir males maiores. / O tempo a que sou chegado!

 

**
Tornou-se-me tudo em vento,
após tormento e tormento,
que eu passei cuidando em al(1);
enfim veo cedo o mal
e tarde o conhecimento.
Eu assi desenganado,
Vejo vir males maiores.
O tempo a que sou chegado!
— que posso doer às dores,
e dar cuidado ao cuidado!

(1) outra coisa

 

Nesta outra trova, o poeta, desiludido do mundo e entregue à dor pessoal, contas feitas com a vida, apenas espera a morte: Em vão cá e lá cansei, / tudo me é tomado já; / agora descansarei, / ou me este mal matará; / se não… eu me matarei.

 

***
Mal, de que me eu contentei,
contas, rematadas já,
agora descansarei,
esta dor me matará;
se não… eu me matarei.

Nas cousas que não é meo (1)
é escusado cansar mais,
ir de receo em receo
e de sinais em sinais.
Em vão cá e lá cansei,
tudo me é tomado já;
agora descansarei,
ou me este mal matará;
se não… eu me matarei.

(1) Nas cousas que não podemos ultrapassar.

 

E finalmente a reflexão intemporal da luta consigo próprio e com a vida, obrigando a viver com as consequências das escolhas que pela vida fora se fazem.

 

****
Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
antes que esta assi crecesse;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meo(1) espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo (2) de mim?

(1) mais
(2) inimigo

 

Abre o artigo um fragmento de uma pintura de Pietro Perugino (1450-1523), O combate entre amor e castidade.

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A depressão contada num poema do século XVI

09 Sábado Abr 2016

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Bernardim Ribeiro, Erich Heckel, Francisco Sá de Miranda

Erich Heckel - RetratoNada quero, tudo enjeito, / o maior bem me aborrece, / o prazer me entristece — assim começa o poema do século XVI português, de autor anónimo, que a seguir transcrevo.

Lido tal qual, este poderia ser o início de conversa numa qualquer consulta a psicólogo. O desenvolvimento do poema provavelmente conduziria a diagnóstico de depressão, pois até consideração da hipótese de suicídio contém: se morro acaba o mal, / … / se vivo, o padecer / desta dor é tão mortal / que me não posso valer. Vemos assim que a depressão não será unicamente doença dos nossos dias.

Poema

 

Nada quero, tudo enjeito,

o maior bem me aborrece,

o prazer me entristece

e o viver, porque é sujeito

a quem dele assim se esquece:

se morro acaba o mal,

fim não queria ver;

se vivo, o padecer

desta dor é tão mortal

que me não posso valer.

 

Neste mal-estar repartido entre si e o desencanto do mundo, termino com um poema de Francisco Sá de Miranda (1481-1558) — Cantiga XXXVI — escrito pela mesma época. No entanto, com Sá de Miranda estamos completamente afastados de sintomas de depressão, apenas um infinito desconsolo: E já vivi de esperança /E agora de choro vivo!

 

Cantiga XXXVI

 

Entre temor e desejo,

Vã esperança e vã dor,

Entre amor e desamor

Meu triste coração vejo.

 

Nestes estremos, cativo

Ando, sem fazer mudança;

E já vivi de esperança

E agora de choro vivo!

Contra mim mesmo pelejo;

vem duma dor outra dor

e dum desejo maior

nasce outro môr desejo.

 

(Modernizei a ortografia; conservei môr cujo significado é maior segundo o dicionário de Moraes)

Nota bibliográfica

O poema de autor anónimo foi transcrito da edição Obras de Bernardim Ribeiro com organização e notas de Hélder Macedo e Maurício Matos, Editorial Presença, Lisboa, 2010. O original encontra-se no Cancioneiro de Ferrara, e integra um grupo de poemas anónimos que os autores da recolha classificam de Escola Bernardiniana.

O poema de Francisco Sá de Miranda foi transcrito de Poesias de Francisco Sá de Miranda, edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, reprodução fac-símile do exemplar com data de 1885 da Biblioteca Nacional, INCM, Lisboa, 1989.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Erich Heckel (1883-1970).

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