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Palices - Gravura ponta de aço sec xviii 600pxO poema XVI de Catulo (84 a. C.-  54 a. C.) coloca ainda hoje diversas questões sumamente interessantes.

Trata-se de um poema insultuoso para dois visados, Aurélio e Fúrio, em resposta a uma apreciação destes sobre a menor virilidade de que Catulo daria provas ao escrever. O poeta não gostou, e fazendo uso do vocabulário obsceno que julgou adequado ao insulto, mimou-os com este:

 

Pedicabo ego vos et irrumabo,

Aureli pathice et cinaede Furi,   

qui me ex versiculis meis putastis,   

quod sunt molliculi, parum pudicum.

nam castum esse decet pium poetam   

ipsum, versiculos nihil necessse est;

qui tum denique habent salem ac leporem,

si sunt molliculi ac parum pudici,

et quod pruriat incitare possunt,

non dico pueris, sed his pilosis   

qui duros nequeunt movere lumbos.   

vos, quod milia multa basiorum

legistis, male me marem putatis?

Pedicabo ego vos et irrumabo.   

 

Tradução I

 

O cu e a boca vos foderei eu,

Aurélio, minha bicha, Fúrio, meu paneleiro,

que pelos meus versinhos me julgais

pouco virtuoso, por tão delicadinhos serem.

É que casto deve ser o bom poeta,

não têm de o ser os seus versinhos,

que além do mais têm picante e graça,

sendo tão delicadinhos e pouco virtuosos,

e porque podem provocar comichões,

não digo aos miúdos, mas a estes peludos

que não conseguem mexer as duras piças.

Vós, lá por “muitos milhares de beijos”

terdes lido, achais que sou pouco macho?

O cu e a boca vos foderei eu!

Tradução de José Pedro Moreira e André Simões.

Desde logo o poema levanta a questão perene de assimilação entre autor e obra: o autor é a obra ou sempre o fingidor que de forma genial Pessoa definitivamente explicitou no poema Autopsicografia? Catulo afirma claramente a diferença:

Vós, lá por “muitos milhares de beijos”

terdes lido, achais que sou pouco macho?

 

É que casto deve ser o bom poeta,

não têm de o ser os seus versinhos,

 

Depois, surge a questão de género e a afirmação de virilidade que o poema também é, separando as águas entre machos e efeminados, aqui com a leitura social de comportamentos sexuais, dando o poema conta de como na sociedade da antiga Roma se distinguia e valorava de forma diferente uma atitude activa ou passiva no sexo anal entre homens adultos, sendo esta última humilhante para um homem, e atingindo o máximo da humilhação, quando seguida de sexo oral (e por esta ordem), o que Catulo explicita no verso de abertura e fecho do poema

 

Pedicabo ego vos et irrumabo,

 

e que eu diferentemente de outros tradutores transporia por:

 

Enrabar-vos-ei e na boca vos enfiarei,

 

Temos ainda a questão do uso de calão em poesia. Se por um lado o uso de vocabulário obsceno em poesia reveste sempre um carácter chocante para o leitor, o contexto pode tolerar e por vezes exigir a sua utilização. Este poema é paradigmático da sua exigência: sem o escabroso da afirmação inicial não seria explicitada a indignação nem haveria insulto aos visados, isto tudo na concisão do verso latino que em português se perde.

Se na poesia latina da Roma antiga o uso de palavras obscenas foi prática corrente quando se tratava de chamar os bois pelos nomes, como abundantemente poemas de Catulo ou Marcial, nomeadamente, mostram, quando chegamos à tradução surgem os embaraços, com eufemismos que retiram ao poema a violência verbal do insulto pretendido. Mesmo Jorge de Sena quando traduziu este poema, conservou sem tradução o verso de abertura e fecho que acima traduzi.

Transcrevo a seguir a versão Jorge de Sena, a qual, fugindo à letra da obscenidade original, realça um aspecto importante da poesia erótica em geral, qual seja, provocar excitação no leitor. Leiam-se os versos:

Licença e desvergonha são o sal

Com que versos se fazem. Assim excitem,

Senão crianças, ao menos os pilosos

Que enferrujados já não movem lombos.

sendo que os pilosos / Que enferrujados já não movem lombos. são obviamente os velhos já incapazes para o sexo.

 

Tradução II

 

“Pedicabo ego vos et irrumabo”,

Aurélio sem dentes, Fúrio sem fundo,

Que de mim dizeis, porque são meus versos

Tão livres assim, que sou depravado.

Casto consigo deve ser o poeta,

Mas nada obriga a que a poesia o seja.

Licença e desvergonha são o sal

Com que versos se fazem. Assim excitem,

Senão crianças, ao menos os pilosos

Que enferrujados já não movem lombos.

E vós, porque de muitos mil de beijos

Lestes, que não sou macho andais dizendo?

“Pedicabo ego vos et irrumabo”.

Tradução de Jorge de Sena.

Concluo com uma outra tradução que não foge à explicitação da obscenidade verbal.

 

Tradução III

 

Ó Aurélio brochista, ó Fúrio paneleiro,

a vós que, sendo meus leves versos voluptuosos,

por eles devasso me julgastes,

eu vos hei-de enrabar e embrochar.

Ora se um autêntico poeta casto deve ser,

não é força que seus versos o sejam.

Estes afinal sabor e encanto hão-de ter,

se forem galantes e nada cândidos,

e capazes de aguilhoar desejos,

não digo nos moços, mas nesses pilosos

que não podem já os engrunhidos rins mover.

Vós, lá porque lestes muitos milhares de beijos,

acaso me considerais falto de virilidade?

Pois hei-de vos enrabar e embrochar

Tradução de J. Lourenço de Carvalho.

As traduções transcritas permitem apreender quanto a passagem de um poema para outra língua depende, para além do domínio da língua de origem, do talento do tradutor em construir uma versão fluida, respeitando o original, que o leitor sinta como um poema na língua de chegada.

Nota bibliográfica

Tradução de José Pedro Moreira e André Simões em Catulo, Carmina, Livros Cotovia, Lisboa 2012. Tradução admirável da obra completa de Catulo.

Tradução de Jorge de Sena em Poesia de 26 Séculos, Fora do Texto, Coimbra 1993.

Tradução de J. Lourenço de Carvalho em Antologia da Poesia Latina Erótica e Satírica, Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, 1975.