Visito por estes dias a poesia que Fernando Pessoa escreveu há cerca de 80 anos, no inverno de 1931.
Por exemplo, na passada quarta-feira, 19-01 passaram 80 anos sobre uma desolada interrogação do eu: … / Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança,/ Nem desejo de os ter./…
Vale a pena ler o poema todo:
Cai amplo o frio e eu durmo na tardança
De adormecer –
Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança,
Nem desejo de os ter.
E um choro por meu ser me inunda
A imaginação.
Saudade vaga, anónima, profunda,
Náusea da indecisão.
Frio do inverno duro, não te tira
Agasalho ou amor.
Dentro em meus ossos teu tremor delira.
Cessa, seja eu quem for!
Foi um dia de grande produção. A obra ortónima regista três poemas.
Quase para o fim do mês, sem data, surgiu aquele, entretanto famoso
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes,
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
e neste Eu vejo-me e estou sem mim cabe um mundo de desespero às vezes tão presente em cada um de nós.
Passam os dias e o registo de poesia que ficou é quase quotidiano. Em Fevereiro, a 11,
Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?
A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.
E de aí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia deste fundo
De existir clara e ebriamente?
Entendo, como um carrossel,
Giro em meu torno sem me achar…
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar …)
e aqui surge uma insinuação do que será alguns meses passados a reflexão definitiva sobra a relação de verdade entre o eu e a poesia, o poema AUTOPSICOGRAFIA.
Mas entretanto os poemas surgem com pequeníssimas variações de tema. Em Março, a 13, é uma interrogação na forma de poema – Quando é que me serei? – que nos surge:
Quando é que o cativeiro
Acabará em mim,
E, próprio dianteiro,
Avançarei enfim?
Quando é que me desato
Dos laços que me dei?
Quando serei um facto?
Quando é que me serei?
Quando ao virar da esquina
De qualquer dia meu
Me acharei a alma digna
Da alma que Deus me deu?
Quando é que será quando?
Não sei. E até então
Viverei perguntando:
Perguntarei em vão.
Que a vida é cousa ao lado
Para quem pensa em ser.
Quando será meu fado
O fado que hei-de ter?
Apetece continuar a leitura. A produção de Março de 1931 é intensa, a obra ortónima regista 35 poemas neste mês.
Chegado Abril, no dia 1, dia das mentiras temos 2 poemas.
Aparece-nos primeiro:
Vou passando pelo bosque
Pelo bosque vou passando,
E ouço alguém que não existe
Cantar o que estou pensando.
…
poema falhado. Mas a seguir, surge a obra-prima que é AUTOPSICOGRAFIA:
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
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