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Se para o mundo, acreditando na sua eternidade, podemos dizer: não há morte nem princípio, para o amor, efémero como o homem, há começar e acabar. O seu fim tanto é matéria de dor, como alívio ou desencanto. Esta simbiose emocional encontra na poesia vasto eco, reflectindo vivências particulares a que a pungência expressiva acrescenta por vezes dimensão avassaladora, qual seja o exemplo dos dois poemas de Manuel de Castro (1934-1971) na sua trabalhada contenção verbal, e que a seguir transcrevo.
Poeta de curta vida, dele poucos leitores saberão. Ao ler-lhe a poesia poder-se-á dizer que o poeta “…não falava / senão de alguma esperança e de poesia.” como escreveu Jorge de Sena num poema em que se lhe refere*:
…
Nem nada sei das voltas que lhe deu a vida.
Suponho que morreu de doença,de desordem,
miséria talvez, raivosa fúria dia a dia traída
…
O poema, também violento libelo contra os “poetas oficiais” do tempo, e de um certo estado das letras no Portugal de então, termina referindo-se de novo ao poeta evocado:
…
E quem não esteja lá, se limpo de assassino,
só pode recordar os olhos do poeta,
a boca retorcida de amargura à espreita,e os gestos sacudidos com que não falava
senão de alguma esperança e de poesia.
Eis os poemas:
Carta
esqueço-te com a terna complacência do silêncio
habitual das horas no seu movimento
e no entanto restou um perfume quase imperceptível
do olhar por uma vez aceite
em mim, um olhar que julguei
fosse o meu amor, a ilusão
de um gesto que olhamos como
se nos pertencesse e no entanto
nos é alheio.
Eu havia contribuído integralmente.
A terra foi por um instante pura
através do teu corpo elástico e pausado.
Último Poema Possivelmente de Amor
recorda
como se os dias não fluíssem em dias
e para ti fosse um nítido jogo de músculos
meu braço no teu corpo anfiteatro
da mais pura derrota rumo às constelações
eis-me descoberta
de tudo que se arrisca sem limites
construído pela coloração de globos de vidro
iluminados e submersos
para o teu nome
um novo mecanismo de linguagem
para o teu corpo
memória ciclo perfeito
dos meus desejos de pedra e de violência
tu
única para quem fui adeus o homem sem comédia
in Manuel de Castro, Bonsoir, Madame, Alexandria/Língua Morta, Lisboa, 2013.
* poema de Jorge de Sena datado de 17/6/1972, Lendo uma referência à morte de Manuel de Castro, no “Diário” de Palma-Ferreira, e publicado pela primeira vez em 1974 no livro Conheço o Sal… E Outros Poemas.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Marc Chagall.
Sim senhor…e mesmo assim…
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