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Da poesia hoje merecidamente esquecida de Manuel da Silva Gayo (1860-1934) exumo dois poemas que justificam ser lembrados pela sua construção formal e originalidade temática. O assunto: o conflito entre razão e paixão. 

Ao longo do primeiro poema desenvolvem-se três momentos — nos dois primeiros quartetos uma separação amorosa e uma interrogação sobre a possibilidade da sua compreensão:

 

“E o amor? — insiste a voz — nem esse amor,

Que ainda é de dois tortura

E alto sonho já, dará valor

A tão fria amargura?

 

Não logrará o Amor ainda dar-te asas

Que te levem a ver

Duma altura de graça o fumo e as brasas

Do teu castelo a arder?”

 

 

Segue-se nos terceiro e quarto quartetos uma interrogação sobre a existência de um amor ideal, e a possibilidade de o viver se este fugir à razão:

Em vez de responder, eu só pergunto

Onde e quando nasceu

Essa alma que pudera erguer-me junto

Às portadas do céu?

 

E não serão tais núpcias, tais momentos

Um singular condão

Das almas novas, virgens dos tormentos

Que nascem da razão?…

 

 

Depois do relato e das dúvidas, a resposta vem pela aceitação desesperada da impossibilidade pessoal de conciliar o amor e a razão:

Ai! não! não tem remédio este tormento

É minha lei a dor;

Não me dá paz o sol do pensamento

Nem o luar do Amor.

 

 

Isto por culpa do que o poeta qualifica como um dom, ou seja: estando sempre em si a natureza dual humana, instinto e pensamento, observa o poeta uma sua impossibilidade de entrega incondicional com o que ela implica de esquecimento de si, decorrente de uma personalidade antropocêntrica:

— Esse dom de jamais me abandonar

Ao longo da existência;

De tudo dividir e desdobrar;

Duma dual consciência;

 

Esse dom de me ver no que possua,

De em nada me absorver,

De reduzir a mim quanto flutua

À volta do meu ser —

 

Fatal dom que, nascido já comigo,

Aumenta a cada hora,

Quanto mais eu caminho e ao longe sigo

Pela existência fora.

 

 

Esta é, na verdade, a impossibilidade do amor total, ou seja, um amor sem contabilidade de reciprocidades, nem espaço para o desenvolvimento da individualidade, e em grande medida associado ao entendimento da posse total e absoluta do outro.

 

 

Eis o poema na sequência original:

 

 

“E o amor? — insiste a voz — nem esse amor,

Que ainda é de dois tortura

E alto sonho já, dará valor

A tão fria amargura?

 

Não logrará o Amor ainda dar-te asas

Que te levem a ver

Duma altura de graça o fumo e as brasas

Do teu castelo a arder?”

 

Em vez de responder, eu só pergunto

Onde e quando nasceu

Essa alma que pudera erguer-me junto

Às portadas do céu?

 

E não serão tais núpcias, tais momentos

Um singular condão

Das almas novas, virgens dos tormentos

Que nascem da razão?…

 

Ah! quer suspire ao céu do puro Amor

Quer no lodo rasteje

É sempre o mesmo o mal, a mesma a dor

Que o meu destino rege:

 

— Esse dom de jamais me abandonar

Ao longo da existência;

De tudo dividir e desdobrar;

Duma dual consciência;

 

Esse dom de me ver no que possua,

De em nada me absorver,

De reduzir a mim quanto flutua

À volta do meu ser —

 

Fatal dom que, nascido já comigo,

Aumenta a cada hora,

Quanto mais eu caminho e ao longe sigo

Pela existência fora.

 

Ai! não! não tem remédio este tormento

É minha lei a dor;

Não me dá paz o sol do pensamento

Nem o luar do Amor.

in Novos Poemas, ed. do autor, Coimbra, 1906.

 

 

Numa espécie de epílogo às interrogações formuladas no poema anterior, o livro Novos Poemas termina com um soneto, Diálogo, dando-se nele conta de como a razão compreende os assuntos do coração, e os desvarios a que ele pode conduzir:

Mas a Razão, serena, respondeu:

“Descansa, Coração, se me traiste,

Já meu alto ditame te absolveu,

 

Pois li sempre — através do que tentaste —

Na mentira de quanto possuíste 

A verdade de quanto desejaste”.

 

Poema

 

Diálogo

Disse-me um dia à mente o Coração

“Quando lembro que aos fogos da Quimera

Teu amor imolei, fria Razão,

Logo um vago terror me aflige e altera;

 

Porque temo não vás, fada severa,

Para agora punir minha traição,

De teu porto negar-me a paz austera

Ao ver-me naufragante da ilusão!”

 

Mas a Razão, serena, respondeu:

“Descansa, Coração, se me traiste,

Já meu alto ditame te absolveu,

 

Pois li sempre — através do que tentaste —

Na mentira de quanto possuíste 

A verdade de quanto desejaste”.

Coimbra, abril de 1902

 

 

Dos tempos de Coimbra como estudante, publicou antes Manuel da Silva Gayo o livro Poesias (1892), com o qual pretendia despedir-se em definitivo da poesia, o que vimos, não aconteceu. Nele inclui o que chamou Canções do Mondego, com assuntos de alguma forma cristalizados na poesia oitocentista, e uma e outra vez repetidos nas versalhadas de memórias coimbrãs do passado. Entre eles as variadas visões de moças do povo, tricanas, fascínio dos estudantes universitários que todos os anos enchiam a cidade. Desse livro exumo parcialmente o poema A Vizinha, história de uma bela tricana, escrito em quadras rimadas de sete sílabas, transmitindo um sabor popular, adequado ao diz-que-disse das aparências e julgamentos sem base que o poema descreve.

 

 

A Vizinha

Se assomava entre os craveiros 

que o seu peitoril bordavam

todos na rua gabavam 

aqueles olhos trigueiros.

 

Cantava sempre, talvez 

para as mágoas espalhar,

porque assim faz, muita vez,

quem passa a vida a pensar.

 

E se havia quem dissesse:

“Não leva vida de moura, 

pois canta ao raiar da aurora 

e canta até que anoitece”.

 

Quando os seus olhos erguia,

um momento, da costura, 

a luz que neles sorria 

era feita de amargura.

 

Um poeta enamorado 

da costureira vizinha, 

só para cantá-la tinha 

aulas e livros deixado.

 

E ouvi mesmo, — a quem não sei —

que um doutor de teologia, 

e velho doutor da Lei,

— profundo em quanto sabia —

 

de tal modo se prendera 

no encanto daquele olhar,

que, só de nele pensar,

— toda a ciência perdera.

 

Por ela — flor das trigueiras, 

entre as moças cobiçadas —

se ouviam noites inteiras 

descantes e guitarradas.

 

Mas ninguém lograra ainda 

descobrir a quem amava 

aquela tricana linda 

que à janela costurava.

 

Constou-me, no entanto, um dia 

que aquela doce morena 

com seu cantar encobria 

segredo de íntima pena, 

 

história triste… de amores 

que a morte cortara breve 

como uma chuva de neve 

crestando um campo de flores.

 

E ainda havia quem dissesse:

“Não leva vida de moura, 

se canta ao raiar da aurora 

e canta até que anoitece!”.

 

— Dá muita sentença louca 

quem dá de tudo razão,

pois muita vez canta a boca 

quando chora o coração.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Alexej von Jawlensky (1864-1941) Retrato de Rapariga (1909).