Etiquetas

, , ,

As histórias à volta das poesias que hoje transcrevo envolvem três rapazes mais ou menos da mesma idade (nascidos em 1742/44). Mas antes faço uma pequena digressão.

Acontece-me, se tenho pouco tempo disponível, tirar um livro da estante ao acaso, ler por um bocado, e quando preciso ir à vida, volta para o lugar. Se, entretanto algo me chamou a atenção, deixo um sinal, geralmente um post-it ou uma tirinha de papel. Podem passar-se anos até que volte ao livro, o que, com os autores de hoje aconteceu. Encontrado assinalado o poema de Alvarenga Peixoto (1742-1793), um soneto (1) que a seguir transcrevo, sobre um coração dividido, ocorreu-me uma canção há anos famosa numa interpretação do cantor de flamengo Diego el Cigala, Corazón loco. Irresistível na sincera angústia com que o artista relata o coração dividido entre dois amores, e a subjacente convenção moral de amar apenas uma de cada vez. Nunca deixo de sorrir ao ouvi-la, e sobretudo ao ver a sua interpretação num vídeo de um concerto ao vivo com Bebo Valdés em Maiorca, filmado com mão de mestre por Fernando Trueba.

A natureza polígama do género humano é uma evidência biológica que tarda a fazer o seu caminho moral e social, com o cortejo de angustias e infelicidade que acompanham tanta gente, e são matéria frutífera para a ficção romanesca de todos os tipos.

Voltando ao soneto, temos assim que o poeta se sente atraído por uma Jónia e por uma Nise. E é essa luta pela necessidade da monogamia que o poema relata, levando o pobre homem de coração dividido a rematar:

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:

Ou faze destes dois um só semblante, 

Ou divide o meu peito em dois pedaços!

 

 

Este mesmo problema tem o amigo de Alvarenga Peixoto, Tomás António Gonzaga (1744-1810), que num outro soneto(2), há anos transcrito no blog, se divide na atracção entre uma Alteia e uma Dirceia, e perante o mesmo dilema pede:

Cupido, se tens dó de um triste amante,

Ou forma de Lorino dous sujeitos,

Ou forma desses dous um só semblante.

 

 

Para o mesmo pedido encontraram os dois poetas diferentes soluções versificatórias.

 

 

Aventa o editor da edição crítica da obra destes dois poetas,  M. Rodrigues Lapa, que a Alteia que partilha o coração dividido de Gonzaga, deve ser a mesma Altea por quem Alvarenga Peixoto parece estar caído de amor não correspondido, o que este relata num outro soneto (3) do livro. Diz o editor que, sendo os poetas amigos, e vivendo na mesma cidade, não é improvável serem atraídos pela mesma mulher. Talvez! Não esqueçamos que os nomes escolhidos são mais vezes determinados por razões de rima e métrica que por correspondência humana.

Transcrevo a seguir os sonetos. A numeração entre () permite identificar os sonetos referidos no texto.

 

 

Primeiro os 2 sonetos do coração dividido:

 

 

Soneto  6 de Alvarenga Peixoto (1)

Eu vi a linda Jónia e, namorado,

Fiz logo eterno voto de querê-la; 

Mas vi depois a Nise, e é tão bela, 

Que merece igualmente o meu cuidado. 

 

A qual escolherei, se, neste estado 

Eu não sei distinguir esta daquela? 

Se Nise agora vir, morro por ela,

Se Jónia vir aqui, vivo abrasado. 

 

Mas, ah! que aquela me despreza, amante, 

Pois sabe que estou preso em outros braços, 

E aquela me não quer por inconstante. 

 

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:

Ou faze destes dois um só semblante, 

Ou divide o meu peito em dois pedaços!

 

 

Soneto 15 de Tomás António Gonzaga (2)

É gentil, é prendada a minha Altéia;

As graças, a modéstia do seu rosto

Inspiram no meu peito maior gosto

Que ver o próprio trigo quando ondeia.

 

Mas, vendo o lindo gesto de Dircéia,

A nova sujeição me vejo exposto;

Ah! que é mais engraçado, mais composto

Que a pura Esfera, de mil astros cheia!

 

Prender as duas com grilhões estreitos

É uma acção, (ó Deuses), inconstante,

Indigna dos sinceros, nobres peitos.

 

Cupido, se tens dó de um triste amante,

Ou forma de Lorino dous sujeitos,

Ou forma desses dous um só semblante.

 

 

Agora a paixão não correspondida de Alvarenga Peixoto pela Alteia do soneto anterior (?), e por quem Gonzaga tem o coração dividido:

 

Soneto 7 de Alvarenga Peixoto (3)

Não cedas, coração; pois nesta empresa 

O brio só domina; o cego mando 

Do ingrato Amor seguir não deves, quando 

Já não podes amar sem vil baixeza: 

 

Rompa-se o forte laço, que é fraqueza 

Ceder a amor, o brio deslustrando; 

Vença-te o brio, pelo amor cortando, 

Que é honra, que é valor, que é fortaleza.

 

Foge de ver Altea; mas se a vires, 

Porque não venhas outra vez a amá-la, 

Apaga o fogo, assim que o pressentires; 

 

E se inda assim o teu valor se abala, 

Não lho mostres no rosto, ah, não suspires!

Calado geme, sofre, morre, estala! 

 

 

Não termino sem uma nota à recorrente preterição amorosa relatada por Alvarenga Peixoto na sua poesia. Se acima foi Altea, desta vez é uma Jónia, que segundo o editor M. Rodrigues Lapa, terá preterido o nosso poeta Alvarenga em favor de José Anastácio da Cunha (1744-1787), também ele poeta, além de cientista notável, e cuja poesia também pode ser encontrada no blog (ex: Uma ode ao orgasmo simultâneo e a tradução da carta de Heloisa a Abelardo por Pope).

Guarda este soneto de Alvarenga Peixoto o comovente verso com que termina:

… dia de vitória / Sempre o mais triste foi para os vencidos!

 

Soneto 13 de Alvarenga Peixoto

Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,

E a mão da noite embrulha os horizontes;

Não cantam aves, não murmuram fontes,

Não fala Pã na boca dos pastores.

 

Atam as Ninfas, em lugar das flores,

Mortais ciprestes sobre as tristes frontes;

Erram chorando nos desertos montes,

Sem arcos, nem aljavas, os Amores.

 

Vénus, Palas e as filhas da Memória,

Deixando os grandes templos esquecidos,

Não se lembram de altares nem de glória.

 

Andam os elementos confundidos:

Ah, Jónia, Jónia, dia de vitória

Sempre o mais triste foi para os vencidos!

 

 

Nota bibliográfica

Poemas transcritos de:

— M. Rodrigues Lapa, Vida e Obra de Alvarenga Peixoto, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1960.

Tomás António Gonzaga, ed. crítica de M. Rodrigues Lapa, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957.

Adoptei a maiúscula a iniciar em cada verso, como segue a edição A Poesia dos Inconfidentes, Poesia Completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás António Gonzaga e Alvarenga Peixoto, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2002.

Pontualmente esta edição diverge da lição de M. Rodrigues Lapa. Adoptei sempre a escolha deste último.

Abre o artigo a imagem de um reunião de família pintado por Jean-Frédéric Bazille (1841-1870), de 1867, pertença da colecção do Museu de Orsay, Paris.