Temos o absurdo na realidade quando esta se mostra destituída de propósito, razão, ou sensatez, e temos a sua representação. A linguagem é um dos caminhos para essa representação do absurdo. Entre eles, vocabulário desconhecido no interior de um discurso gramaticalmente reconhecível, de mistura com palavras cuja função de comunicação é usual noutros contextos. A consequência é a insinuação no espírito de um entendimento outro, diferente do comum, de uma realidade padronizada, daí nos parecer absurda aquela abordagem ou a realidade que ela transcreve.
O absurdo não busca a adesão, apenas desafia a olhar diferente o adquirido como certo e estável.

Se na poesia experimental da segunda metade do século XX os exemplos de desmontar o absurdo no real através da linguagem abundam, na poesia antiga rareiam. Recolho numa colecção de poesias anónimas um desses raros exemplos. Trata o soneto em apreço de um acontecimento solene, presumivelmente em Lisboa, quando da ocupação francesa de Portugal no início do século XIX, enquanto rei e corte se encontravam refugiados no Brasil. Refere-se à comemoração do aniversário de Napoleão. Ofensiva para patriotas, a celebração teve o apoio de todos os aduladores do poder e dos que com a ocupação beneficiaram. No entanto, não é um indignado ou ofendido retrato do acontecido que o poema traz. O soneto, através de uma abundante variedade de vocábulos desconhecidos em português, mas evocadores de enorme chinfrineira, variadas defecções, e figuras de espavento, faz uma leitura metafórica da gratuitidade da celebração, transmitindo de forma eloquente o absurdo de tal cerimónia:

 

Soneto

De soleques, meliques, trapaloques,
Sulfúreos, sulfurantes, sulfurados,
Rotundos, salitrosos, cavornados,
Bum, bum, bum, bum, ressoam simbaloques:

Espaventos flamantes, trepiquoques,
Imbeles, infecundos, insolados,
Xenofes, xenofontes, xenofados,
Tripodeão berliques, e berloques:

Strangurio, scalponio, figurato,
Gerivasio de gimbo, que gambeia
Do zimborio de boreas, boreato.

Eis aqui o primor em que se arreia*
O dia natalicio celebrado
De um tal Napoleão em terra alheia.
***

*primor em que se arreia — primor com que se veste, associando-o à equipagem de gado cavalar.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do pintor chinês Fang Lijun (1963), 30 de Maio. Sobre o pintor e a sua obra, à falta de outras fontes ocidentais, a Wikipédia em inglês contém interessante informação baseada numa obra publicado em Itália.

Qualquer associação entre a imagem de abertura, o texto do artigo, e a fanfarra sobre o actual domínio chinês em sectores estratégicos da economia portuguesa, está completamente fora do meu propósito. Sabemos que oficialmente a China é apenas um parceiro económico de Portugal.