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O que parte não volta ainda que regresse — poemas de José Emilio Pacheco

10 Segunda-feira Dez 2018

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José Emilio Pacheco, Loretta Lux

Numa preciosa obra-prima, a novela As Batalhas no Deserto, o poeta mexicano José Emilio Pacheco (1939-2014) faz um exercício de memória dando conta de como nos anos 50 e mesmo inícios de 60 do século XX, se antecipava, por lá, e por cá, o ano 2000 e o século XXI:

…
Diziam os jornais: O mundo atravessa momento angustiante. O espectro da guerra final projecta-se no horizonte. O símbolo sombrio do nosso tempo é o cogumelo atómico. No entanto, havia esperança. Os nossos livros da escola afirmavam: Visto no mapa o México tem forma de cornucópia ou corno da abundância. Para o impensável ano 2000 augurava-se — sem especificar como íamos consegui-lo — um futuro de plenitude e bem-estar universais. Cidades limpas, sem injustiça, sem pobres, sem violência, sem engarrafamentos, sem lixo. Para cada família uma casa ultramoderna e aerodinâmica (palavras da época). Não faltaria nada a ninguém. As máquinas fariam todo o trabalho. Ruas repletas de árvores e fontes, cruzadas por veículos sem fumo nem barulho nem possibilidade de colisões. O paraíso na terra. A utopia por fim conquistada.
…

 

Sabemos hoje quanto esta fantasia se transformou na perplexa realidade que nos cerca um pouco por todo o mundo. Mudou o mundo, mudámos nós com ele. E de nós no mundo falam alguns dos poemas de José Emilio Pacheco  que a seguir ofereço em tradução minha.

 

 

O Amanhã

Aos vinte anos disseram-me: “Há
Que sacrificar-se pelo amanhã”.

E oferecemos a vida no altar
Do deus que nunca chega.

Gostaria de me encontrar já no final
Com os velhos mestres desse tempo.

Teriam que dizer-me se de verdade
Todo o horror de hoje era o amanhã.

 

Original publicado no livro Como la lluvia [2001-2008].

 

 

Houve a vida, e outros poemas em que o desacerto entre realidade e sonho ou promessa se debatem. Primeiro já com o século XX a terminar, a dúvida entre a realidade e a fidelidade da memória:

 

 

Memória

Não tomes muito a sério
O que te diz a memória.

Provavelmente essa tarde não existiu,
Talvez tudo tenha sido auto-engano.
A grande paixão só existiu no teu desejo.

Quem te diz que não são ficções o que te contas
Para alongar o adiamento do fim
E sugerir que tudo isto
Teve ao menos algum sentido.

 

Original publicado em La arena errante [1992-1998].

 

 

Depois o confronto entre o indivíduo que sonhámos ser, e o homem que na vida se fez, com aquele belíssimo verso que escolhi para título do artigo — O que parte não volta ainda que regresse. — admirável formulação de quanto o passar do tempo nos modifica:

 

Aquele outro

Hoje veio ver-me o que não fui:
Aquele outro
Já para sempre não existência pura,
Ardil verbal para fôra,
Forma atenuada de dizer não fui.

Agora o entendo:
Quem não fui triunfou,
A realidade não o manchou, não teve
Que adaptar-se à eterna sordidez.
Jamais capitulou ou vendeu a alma
Por uma onça de sobrevivência.

O que não fui foi-se como se nada.
Já nunca voltará, já é impossível.

O que parte não volta ainda que regresse.

 

Original publicado em La edad de las tinieblas [2009].

 

 

No intervalo deste tempo entre dúvidas de memória e certezas de vida, esteve sempre a frieza da morte que tudo ronda ou:

…
Quem sabe se interpreto mal:
É compaixão
O que mostram estas caras lívidas.

 

 

Embora pareça circunscrito a um povo, o poema Moralidades é de toda a humanidade: a morte dos outros obriga sempre a olharmos quem somos, seja na compunção, no sentir a tragédia, ou na indiferença:

 

 

Moralidades

O nosso povo pratica a moral
E faz de cada acto uma lição ética.

Aqui nunca enterramos os mortos.
Deixamo-los apodrecer na praça pública

Para que esta humilhação final
Nos obrigue a olharmo-nos como somos.

 

Original publicado no livro Como la lluvia [2001-2008].

 

 

Falar da morte é sempre falar de nós e das interrogações que nos assaltam. Termino esta curta viagem com esse enigma:

 

 

Morgue

Não faz calor neste anexo do inferno.

Os mortos regressaram à idade do gelo.

Talvez se os deixássemos aqui
Se tornassem imortais.

Horror a vida desde o iglô da morte.

Para isto nascemos?,
Perguntamo-nos
Ao profanar a morgue com nossos olhos
E ver
Um gesto de reprovação nos cadáveres.

Quem sabe se interpreto mal:
É compaixão
O que mostram estas caras lívidas.

 

Original publicado no livro Como la lluvia [2001-2008].

 

 

Originais lidos em Tarde o Temprano [Poemas 1958-2009], Tusquets Editores, Barcelona, 2010.
Tradução dos poemas por Carlos Mendonça Lopes.
Novela As Batalhas no Deserto, Oficina do livro, Cruz Quebrada —Dafundo, 2006.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma fotografia de Loretta Lux (1969), fotógrafa alemã nascida na antiga Alemanha de Leste. Como sabemos, país desaparecido, onde o paraíso na terra, ou algo próximo, chegou a ser declarado.

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Everdingen — Retrato de jovem mulher com chapéu largo

30 Domingo Set 2018

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Há simultaneamente uma transparência e mistério neste retrato de rapariga pintado pelo pintor holandês Ceasar Boëtius van Everdingen (1617-1678) em 1645-50, que nos transporta para o mistério do feminino.

O rosto enigmático que olha longe ou para dentro, é a parte essencial desse mistério, acentuado pela sombra que o chapéu faz cair sobre os olhos enquanto deixa ver em toda a luminosidade do dia, contra um diáfano céu azul, um corpo que se adivinha esplêndido sob o ligeiro drapeado do vestido.

Os braços semi-erguidos num hesitante gesto de oferenda, também ela inexplícita (serão as maçãs de Eva na taça/cesto?) contribuem para o enigma de toda a figura feminina e do seu propósito, fazendo crescer em quem vê o desejo de ir mais além no conhecimento de quem assim tão enigmaticamente se mostra, afinal o “MacGuffin” do jogo masculino/feminino.

O equilíbrio da paleta sem cores gritantes que se sobreponham à suavidade da envolvente, apenas discretamente insinuada, deixa todo espaço ao esplendor deste icónico feminino.

Retrato simultaneamente de pudor e estimulador do desejo, é mais um dos extraordinários retratos que transcendem a circunstância da sua feitura, e continuamente nos interpelam: porque gosto de o olhar?

O retrato pertence à colecção do Rijksmuseum de Amsterdão. Costumava estar numa pequena sala rodeado de algumas outras pinturas irrelevantes e sem as multidões que afogam os  Vermeer. Infelizmente em 2017 tinha sido retirado de exposição. Oxalá já tenha retornado.

.

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Canção de Baco — poema de Lorenzo de Medici

25 Sábado Ago 2018

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga

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Giulio Bonasone, Lorenzo de Medici, Nicolas Poussin

Damas e jovens amantes,
viva Baco e viva Amor!
Haja bailes e descantes!
Arda o peito em doce ardor!
…

 

Estes versos dão o tom do poema de Lorenzo de Medici (1449-1492), Canzona di Bacco, que a seguir transcrevo em tradução de Jorge de Sena.

Associar ao vinho a festa da vida, da alegria, do amor, são aspectos recorrentes na poesia lírica antiga no ocidente. Neste poema o Príncipe Magnífico, poeta maior entre a meia dúzia de grandes poetas da renascença italiana, retoma a atmosfera festiva da lírica grega  e romana com o seu cortejo de seres mitológicos, vivendo num mundo encantado de harmonia e de prazer. Mergulhemos nele, pelo menos enquanto a leitura dura:

 

 

Canção de Baco

Quanto é bela a mocidade
que se escapa tão andeja!
Aí seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Este é Baco mais Adriana,
belos ambos, mui ardentes:
porque o tempo foge e engana,
sempre um do outro vão contentes.
Estas ninfas e outras gentes,
não há del’s triste quem esteja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Estes sátiros joviais,
destas ninfas namorados,
por cavernas e pinhais,
mil ardis lhes têm lançados,
ou por Baco já esquentados
saltam de amor que lampeja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Estas ninfas têm temor
de sofrer um desacato:
mas só se queixa do amor
quem seja rude e ingrato.
Ora em tumulto gaiato
dançam de fazer inveja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Este monstro que vem pronto
sobre um burro, esse é Sileno,
assim velho e alegre e tonto,
de carne e anos bem pleno:
se não monta sem empeno,
ao menos ri-se e festeja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Este a seguir é o rei Midas
que o que toca ouro se faz.
Mas que importam tais validas,
se tesouros não dão paz?
Tem prazer quem sempre jaz
na sede de que vasqueja?
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Abram todos as orelhas:
do amanhã não haja empachos,
hoje sejam novas, velhas,
ledos todos, fêmeas, machos!
Tristezas vão prós diachos,
e contente tudo esteja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Damas e jovens amantes,
viva Baco e viva Amor!
Haja bailes e descantes!
Arda o peito em doce ardor!
Fora coitas, fora a dor!
O que tem de ser que seja.
Ai seja alegre quem seja:
de amanhã nada se sabe.

Tradução de Jorge de Sena
Transcrito de Poesia do Século XX, Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, Fora do Texto, Coimbra, 1994.

Poema original

 

Canzona di Bacco

Quant’è bella giovinezza,
che si fugge tuttavia!
chi vuol esser lieto, sia:
di doman non c’è certezza.

Quest’è Bacco e Arïanna,
belli, e l’un dell’altro ardenti:
perché ’l tempo fugge e inganna,
sempre insieme stan contenti.
Queste ninfe ed altre genti
sono allegre tuttavia.
Chi vuol esser lieto, sia:
di doman non c’è certezza.

Questi lieti satiretti,
delle ninfe innamorati,
per caverne e per boschetti
han lor posto cento agguati;
or da Bacco riscaldati
ballon, salton tuttavia.
Chi vuol esser lieto, sia
di doman non c’è certezza.

Queste ninfe anche hanno caro
da lor essere ingannate:
non può fare a Amor riparo
se non gente rozze e ingrate:
ora, insieme mescolate,
suonon, canton tuttavia.
Chi vuol esser lieto, sia:
di doman non c’è certezza.

Questa soma, che vien drieto
sopra l’asino, è Sileno:
così vecchio, è ebbro e lieto,
già di carne e d’anni pieno;
se non può star ritto, almeno
ride e gode tuttavia.
Chi vuol esser lieto, sia:
di doman non c’è certezza.

Mida vien drieto a costoro:
ciò che tocca oro diventa.
E che giova aver tesoro,
40s’altri poi non si contenta?
Che dolcezza vuoi che senta
chi ha sete tuttavia?
Chi vuol esser lieto, sia:
di doman non c’è certezza.

Ciascun apra ben gli orecchi,
di doman nessun si paschi;
oggi siam, giovani e vecchi,
lieti ognun, femmine e maschi;
ogni tristo pensier caschi:
facciam festa tuttavia.
Chi vuol esser lieto, sia:
di doman non c’è certezza.

Donne e giovinetti amanti,
viva Bacco e viva Amore!
Ciascun suoni, balli e canti!
Arda di dolcezza il core!
Non fatica, non dolore!
Ciò c’ha a esser, convien sia.
Chi vuol esser lieto, sia:
di doman non c’è certezza.

 

Abre o artigo a imagem de um detalhe da pintura de Nicolas Poussin (1594-1665), Bacanal frente à estátua de Pan, da coleção da National Gallery de
Londres.
Entre os poemas encontramos a imagem de uma gravura de Giulio Bonasone (1498-1576), Sileno bêbado.

 

 

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Jonathan Swift — Resoluções para quando envelhecer

13 Sexta-feira Jul 2018

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Edvard Munch, Jonathan Swift

Embora velhas de mais de trezentos anos, as Resoluções para quando envelhecer escritas por Jonathan Swift (1667-1745) em 1699, conservam em grande parte a acutilância e acerto que as faz intemporais.
Aparentemente, como consequência do envelhecimento, alguns comportamentos são de sempre: considerar que os tempos estão mudados e quando se era jovem é que a vida valia a pena, que os jovens … . Enfim, argumentos conhecidos também hoje.
A sensata lista de Swift que quase integralmente podia servir para os nossos dias, é, evidentemente, como as resoluções de Ano Novo, ou os propósitos de emagrecer:
Não me dispor a cumprir todas estas regras, por receio de não observar nenhuma delas., como o poeta ironicamente conclui.

 

 

Resoluções para quando envelhecer

Não casar com mulher nova.

Não procurar a companhia da gente moça, a menos que ela queira.

Não ser impaciente, nem rabugento,nem desconfiado.

Não depreciar o presente, as suas concepções, modas, homens, guerras, etc.

Não ser doido por crianças, mas também não as repelir.

Não estar sempre a contar a mesma história às mesmas pessoas.

Não ser avarento.

Não negligenciar o decoro, ou o asseio, para não cair na sordidez.

Não ser demasiado severo para com a gente nova, mas ser tolerante para as suas loucuras e fraquezas.

Não ser influenciado, nem dar ouvidos ditos e mexericos de criados, ou seja de quem for.

Não estar sempre a dar conselhos, a menos que nos peçam.

Pedir a alguns bons amigos que me apontem, entre estas resoluções, aquelas que eu não tiver cumprido, ou tiver negligênciado, e em quê; e modificar-me de acordo com essas críticas.

Não falar demais, sobretudo de mim.

Não me gabar de minha beleza passada, da minha força, nem do meu valimento junto das damas, etc.

Não dar ouvidos à lisonja, nem pensar que posso ser amado por uma jovem, “et eos qui hoereditatem captant, odisse ac evitare“.

Não ser categórico nas minhas afirmações, nem teimoso.

Não me dispor a cumprir todas estas regras, por receio de não observar nenhuma delas.

(escrito em 1699)

 

Esta tradução vem incluída na edição de Preceitos para uso do pessoal doméstico, Editorial Estampa, Lisboa, 1970.

 

 

Abre o artigo a imagem do detalhe de uma pintura de Edvard Munch (1863-1944), Auto-retrato frente à parede de casa, de 1926.

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Nostalgia — poema de Giuseppe Ungaretti

03 Terça-feira Jul 2018

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Talvez algum leitor tenha lido Arco de Triunfo de Erich Maria Remarque (1898-1970), ou visto o filme do mesmo nome com Ingrid Bergman (Joan Madou). Há neles uma cena inesquecível quando Charles Boyer (Ravic), médico refugiado em Paris, em fuga dos Nazis, impede o personagem Joan Madou de cometer suicídio. A história prossegue num notável drama com a WWII em fundo, mas o que queria ressaltar é a atmosfera do encontro de duas almas à deriva, numa noite de Paris, à beira-Sena, e que o poema de Giuseppe Ungaretti (1888-1970), Nostalgia, cuja tradução dou a seguir, capta de forma magistral.

Se o poema me trouxe esta memória, ele não precisa dela, nem nela se esgota.
Na economia do seu enunciado são duas vidas que se cruzam, envoltas no mistério das suas vicissitudes, deixando ao leitor a emoção contida naquele mundo sem palavras, onde apenas o ar gera a atmosfera da melancolia de existências à procura de si.

 

 

Nostalgia

Quando
a noite se esvai
pouco antes da Primavera
e só raro
alguém passa

Sobre Paris adensa-se
uma escura cor
de pranto

Num canto
de ponte
contemplo
o ilimitado silêncio
de uma rapariga
frágil

As nossas
doenças
fundem-se

E como deitados fora
permanecemos

 

Tradução de Carlos Mendonça Lopes

Poema original

 

Nostalgia

Quando
la notte è a svanire
poco prima di primavera
e di rado
qualcuno passa

Su Parigi s’addensa
un oscuro colore
di pianto

In un canto
di ponte
contemplo
l’illimitato silenzio
di una ragazza
tenue

Le nostre
malattie
si fondono

E come portati via
si rimane

 

Locvizza il 28 setembre 1916

 

Publicado pela primeira vez no livro L’Allegria.
Transcrito de Poeti italiani del Novecento, Mondadori, 2012.

 

 

Abre o artigo a imagem retrabalhada digitalmente de um cartaz do filme Arco de Triunfo.

 

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Eugénio Lisboa — alguns poemas de O Ilimitável Oceano

26 Quinta-feira Abr 2018

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Ao ler alguns poemas do livro O Ilimitável Oceano de Eugénio Lisboa (1930), ocorre-me a expressão com que o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) deu formulação definitiva à radical diferença entre o eu que pensa e o mundo que nos envolve, no epílogo da sua Crítica da Razão Prática:
“Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.”(*)

E de sempre, é na aproximação do eu ao mundo que a humanidade reflecte em cada criação cultural, procurando a ligação que permita integrar o indivíduo nessa envolvente que, estranha, surge tanto bela e amistosa, como hostil.

Nos poemas que a seguir transcrevo é dessa interrogada perplexidade que se fala, aqui no questionamento do homem no cosmos levado a cabo por alguns astrólogos famosos, e que moldaram por gerações o pensar de como a humanidade via o seu lugar no universo.

 

 

No túmulo de um Astrónomo

Amei demasiado as estrelas
do céu nu que percorri a dedo,
para que a noite, onde brilham, belas,
em mim seja surto de algum medo.

 

 

Ptolomeu

Como todos, sou mortal:
minha vida é um dia.
Mas quando sigo, fatal,
no céu que nos alumia,
a multidão das estrelas,
sinto, deslumbrado nelas,
meus pés, do chão, levantar.

 

 

Copérnico

O céu que viste era o céu
de Ptolomeu. Mas diferente
foi a forma de o olhar.
No modo de julgar, teu,
a Terra, astro movente,
demitiu-se de pensar
que era o centro do mundo:
assim ver, que abalo fundo!

 

 

Kepler

O mundo próximo, à volta, apodrece.
Fome, mortal conflito e pestilência
turvam o dia que mal amanhece.
Segura-se à pureza da ciência:
o curso aparente das estrelas,
seguindo matemática divina,
deriva, das rigorosas tabelas
do vasto cosmo, a curva sibilina.

 

Poemas transcritos de O Ilimitável Oceano, Quasi Edições, Março de 2001, Vila Nova de Famalicão.

O livro O Ilimitável Oceano faz, em curtos poemas, uma reflexão sintética sobre a obra singular de alguns génios, partindo da criação do mundo e concluindo com o pós apocalipse nuclear. Leitura evidentemente simplista da complexa relação entre a vida da humanidade e o conhecimento científico, é tão só ponto de partida para a reflexão sobre os limites e consequências da investigação científica, algo que deverá, evidentemente, ser procurado noutro lugar.

(*) in Immanuel Kant, Crítica da Razão Prática, tradução de Artur Morão, edições 70, Lisboa, 1986.

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FELIZ NATAL 2017

24 Domingo Dez 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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FELIZ  NATAL

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1.000.000 de visitas ao blog

22 Quarta-feira Nov 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas

≈ 2 comentários

Foi ultrapassado o milhão de visitas ao blog, contagem do WordPress, neste dia 22 de Novembro de 2017.

Começado o blog num tempo de particulares circunstâncias pessoais, a vida mudou e foi-me mudando, disso dando conta nos seus altos e baixos os mais de 800 artigos escritos nestes sete anos e alguns meses de existência.

Num crescimento exponencial de audiência, de duas mil e tal visitas no primeiro ano de vida do blog, para mais de duzentas e cinquenta mil já este ano, estes números são bem a medida da expansão da internet na vida de cada um. Em 2010 eram em média sete ou oito visitas por dia, hoje são em média cerca de mil. Talvez o prazer maior deste crescimento seja a audiência escolar que o blog ganhou, chegando a milhares de jovens que voltam uma e outra vez. E se há todos os dias alguns leitores do mundo inteiro, na relação entre leitores brasileiros e portugueses tem vindo a aumentar o peso daqueles: são hoje cerca de três a quatro leitores do Brasil por cada leitor de Portugal. Isto faz-me pensar quanto a língua nos une, sendo eu português, sentindo-me como tal, e escrevendo no português de Portugal, como lhe chamam.

Muito escrevi, muito ficou para trás. Talvez parte do que queria escrever ainda aqui apareça. Na incógnita do futuro caminharemos: eu, o blog, e, espero, alguns leitores que, fiéis, de há anos me acompanham, acrescentados de outros que entretanto venham chegando. A multidão não me diz nada. É cada leitor em particular que prezo: no respeito pela sua inteligência, cultura, e gosto de ler. É sobretudo cada um deles que, por existir, me força a retomar este escrever, quando, sem vontade, ou falho de inspiração, tudo se conjuga para desistir. E volto, uma vez e outra, sempre com algo que pelo menos não me desagrade de todo, e talvez goste de reencontrar mais tarde, quando o esquecimento da memória o levar. Por isso, leitores, continuemos …

…
 So long as men can breathe, or eyes can see,
 So long lives this, and this gives life to thee.

(Shakespeare, soneto XVIII)

 

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Lição sobre a água — poema de António Gedeão

12 Quinta-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas

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António Gedeão, John Everett Millais

Só conseguimos gostar do que conhecemos.
À entrada da adolescência, tinha eu doze anos, um austero professor fez-me descobrir o sortilégio das experiências de química, a tal ponto que, qual pesquisador da pedra filosofal, Instalei no terraço de casa um pequeno laboratório, com o beneplácito de meu pai, que tinha uma paciência infinita para as minhas fantasias, e dei início à minha actividade experimental. Como era de esperar, fruto da ignorância, a coisa correu mal, e depois de um desastre sem consequências graves, fui levado a desmontar o laboratório e esquecer as experimentações domésticas. Mas o entusiasmo ficou cá.
De entre as variadas coisas que ensinei, o que recordo com uma ternura nostálgica são umas aulas de laboratório de química, e o prazer de fazer descobrir aquele mundo mágico a sucessivas camadas de adolescentes. Hoje é a lembrança dessas experiências que me faz trazer ao blog o poema de António Gedeão (1906-1997), Lição sobre a água.

 

O poema, no seu propósito didáctico, assume um tradição que remonta à medicina árabe medieval, na qual os tratados médicos (os únicos que o mundo medieval cristão conheceu) eram escritos em verso para facilitar a sua assimilação. O mas notável será o Poema da Medicina, de Avicena.

 

Ainda que o Químico, o Prof. Rómulo de Carvalho, que escreveu poesia sob o pseudónimo de António Gedeão, tenha esquecido a biologia e o papel da água como fonte da vida, na estrofe final do poema associa toda esta ciência à mente humana e ao que ela pode ter de mais dilacerante: a loucura e o suicídio por transtornos emocionais entre família, dever, e desejo. Evoca aí o poeta a morte de Ofélia, paixão (?) de Hamlet, na peça homóloga de Shakespeare.

 

A cena descrita na última estrofe do poema foi pretexto para uma famosa pintura de John Everett Millais (1829-1896), com cuja imagem abre o artigo. A pintura original pertence à Tate Britain.

 

 

 

Lição sobre a água

 

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

 

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

 

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

 

 

in Antonio Gedeão, Obra Completa, 2ªedição, Relógio d’Água, Lisboa 2007.

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Da beleza numa fábula de Filinto Elísio com passagem pelo filósofo Kant

28 Quinta-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga

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Bernardo Strozzi, Diego Velasquez, Filinto Elísio, Immanuel Kant, Quentin MASSYS

Isto da beleza tem muito que se lhe diga. Ainda que pareça existir um cânon universalmente aceite sobre o que é belo (estou apenas a falar da beleza física), basta começar a listar onde identificamos a beleza para que a controvérsia surja. E a poesia ecfrástica a começar no Cântico dos Cânticos está aí para o provar.

Fundamentalmente subjectivo, o juízo sobre o belo dificilmente põe de acordo duas pessoas, e logo que sobre si próprios se debrucem, a disparidade não pode ser maior.

Nesta volúvel conversa, não resisto a citar o filósofo Immanuel Kant (1724-1804):

…
Se uma certa porção de vaidade em nada diminui uma mulher aos olhos do sexo masculino, não obstante, quando tal se torna mais visível, contribui para dividir o belo sexo. Elas julgam-se entre si muito duramente, quando se percebe que uma obscurece os encantos das demais, e as que têm grandes pretensões de sedução raras vezes são amigas, no verdadeiro sentido da palavra.
…

 

O nosso sábio filósofo, atribuindo-se o papel de árbitro, que não exactamente o de Páris na lenda, mas entre o que respeita a homens e a mulheres, antes escrevera:

…
A virtude da mulher é uma virtude bela, a do sexo masculino deve ser uma virtude nobre.
…
A vaidade que se costuma reprovar ao belo sexo, se é defeito, é então um defeito belo. Pois, os homens tão dados a galantear as senhoras, mais não fazem do que avivar os seus encantos e ficariam numa situação delicada, se elas não estivessem dispostas a aceitar os seus avanços lisonjeadores. Esta inclinação é o estímulo a mostrar-se receptivo e a observar o decoro, para dar livre curso a uma jovialidade espirituosa, e também a brilhar através das invenções volúveis do traje se lhe realçam beleza. Nisto nada há de ofensivo para os outros, aliás, se inspirada pelo bom gosto, é coisa tão encantadora que seria má educação censurá-la com críticas peguilhantes.
…
(1)

Esta reflexão sobre a condição feminina no século XVIII é contemporânea da avaliação feminino/masculino feita na fábula de Filinto Elisio (1734-1819) por interpostos animais, macaca e burro, como convém a estas moralidades, e que a seguir transcrevo.

 

A macaca e o burro

No cristal de uma fonte clara e pura
Uma macaca estava contemplando
             a sua formosura:
Os momos*, e os pulinhos revezando,
Da sua presunção indícios dava.
E de ser bela, com prazer, gozava.
           Um burro, que pastava
Não longe do mostrengo presunçoso,
Condoído as orelhas sacudia.
           E consigo dizia:
Se, ao menos, o meu porte grave e airoso;
Se a minha voz tonante ela tivera,
De ser vaidosa, a permissão lhe eu dera.

* macaquices

Temos assim esboçados claros exemplos das virtude bela e virtude nobre na distinção precisa do nosso filósofo.

Na fábula estamos perante três interlocutores: a macaca, o burro, e o leitor. Se no texto da fábula fica claro como os protagonistas se vêm a si próprios; ao leitor, o entendimento da qualidade e extensão da beleza é aspecto em aberto, deixando à sua sensibilidade a  liberdade de avaliar.

(1) in Immanuel Kant de Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, tradução de Pedro Panarra, Edições 70, Lisboa, 2017.

Abrem e fecham o artigo dois extremos de beleza canónica: A Vénus ao espelho pintada por Diego Velasquez (1599-1660), e A velha marquesa imortalizada por Quentin Massys (1466-1530). Pelo meio temos uma mulher de idade a cuidar do seu aspecto, pintada por Bernardo Strozzi (1581-1644) em 1635. Nos seus contrastes e simbologia revelam as diferenças entre o ideal e o real na nossa imaginação.

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