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Isto da beleza tem muito que se lhe diga. Ainda que pareça existir um cânon universalmente aceite sobre o que é belo (estou apenas a falar da beleza física), basta começar a listar onde identificamos a beleza para que a controvérsia surja. E a poesia ecfrástica a começar no Cântico dos Cânticos está aí para o provar.

Fundamentalmente subjectivo, o juízo sobre o belo dificilmente põe de acordo duas pessoas, e logo que sobre si próprios se debrucem, a disparidade não pode ser maior.

Nesta volúvel conversa, não resisto a citar o filósofo Immanuel Kant (1724-1804):


Se uma certa porção de vaidade em nada diminui uma mulher aos olhos do sexo masculino, não obstante, quando tal se torna mais visível, contribui para dividir o belo sexo. Elas julgam-se entre si muito duramente, quando se percebe que uma obscurece os encantos das demais, e as que têm grandes pretensões de sedução raras vezes são amigas, no verdadeiro sentido da palavra.

 

O nosso sábio filósofo, atribuindo-se o papel de árbitro, que não exactamente o de Páris na lenda, mas entre o que respeita a homens e a mulheres, antes escrevera:


A virtude da mulher é uma virtude bela, a do sexo masculino deve ser uma virtude nobre.

A vaidade que se costuma reprovar ao belo sexo, se é defeito, é então um defeito belo. Pois, os homens tão dados a galantear as senhoras, mais não fazem do que avivar os seus encantos e ficariam numa situação delicada, se elas não estivessem dispostas a aceitar os seus avanços lisonjeadores. Esta inclinação é o estímulo a mostrar-se receptivo e a observar o decoro, para dar livre curso a uma jovialidade espirituosa, e também a brilhar através das invenções volúveis do traje se lhe realçam beleza. Nisto nada há de ofensivo para os outros, aliás, se inspirada pelo bom gosto, é coisa tão encantadora que seria má educação censurá-la com críticas peguilhantes.

(1)

Esta reflexão sobre a condição feminina no século XVIII é contemporânea da avaliação feminino/masculino feita na fábula de Filinto Elisio (1734-1819) por interpostos animais, macaca e burro, como convém a estas moralidades, e que a seguir transcrevo.

 

A macaca e o burro

No cristal de uma fonte clara e pura
Uma macaca estava contemplando
             a sua formosura:
Os momos*, e os pulinhos revezando,
Da sua presunção indícios dava.
E de ser bela, com prazer, gozava.
           Um burro, que pastava
Não longe do mostrengo presunçoso,
Condoído as orelhas sacudia.
           E consigo dizia:
Se, ao menos, o meu porte grave e airoso;
Se a minha voz tonante ela tivera,
De ser vaidosa, a permissão lhe eu dera.

* macaquices

Temos assim esboçados claros exemplos das virtude bela e virtude nobre na distinção precisa do nosso filósofo.

Na fábula estamos perante três interlocutores: a macaca, o burro, e o leitor. Se no texto da fábula fica claro como os protagonistas se vêm a si próprios; ao leitor, o entendimento da qualidade e extensão da beleza é aspecto em aberto, deixando à sua sensibilidade a  liberdade de avaliar.

(1) in Immanuel Kant de Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, tradução de Pedro Panarra, Edições 70, Lisboa, 2017.

Abrem e fecham o artigo dois extremos de beleza canónica: A Vénus ao espelho pintada por Diego Velasquez (1599-1660), e A velha marquesa imortalizada por Quentin Massys (1466-1530). Pelo meio temos uma mulher de idade a cuidar do seu aspecto, pintada por Bernardo Strozzi (1581-1644) em 1635. Nos seus contrastes e simbologia revelam as diferenças entre o ideal e o real na nossa imaginação.