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Tag Archives: António Gedeão

Lição sobre a água — poema de António Gedeão

12 Quinta-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas

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António Gedeão, John Everett Millais

Só conseguimos gostar do que conhecemos.
À entrada da adolescência, tinha eu doze anos, um austero professor fez-me descobrir o sortilégio das experiências de química, a tal ponto que, qual pesquisador da pedra filosofal, Instalei no terraço de casa um pequeno laboratório, com o beneplácito de meu pai, que tinha uma paciência infinita para as minhas fantasias, e dei início à minha actividade experimental. Como era de esperar, fruto da ignorância, a coisa correu mal, e depois de um desastre sem consequências graves, fui levado a desmontar o laboratório e esquecer as experimentações domésticas. Mas o entusiasmo ficou cá.
De entre as variadas coisas que ensinei, o que recordo com uma ternura nostálgica são umas aulas de laboratório de química, e o prazer de fazer descobrir aquele mundo mágico a sucessivas camadas de adolescentes. Hoje é a lembrança dessas experiências que me faz trazer ao blog o poema de António Gedeão (1906-1997), Lição sobre a água.

 

O poema, no seu propósito didáctico, assume um tradição que remonta à medicina árabe medieval, na qual os tratados médicos (os únicos que o mundo medieval cristão conheceu) eram escritos em verso para facilitar a sua assimilação. O mas notável será o Poema da Medicina, de Avicena.

 

Ainda que o Químico, o Prof. Rómulo de Carvalho, que escreveu poesia sob o pseudónimo de António Gedeão, tenha esquecido a biologia e o papel da água como fonte da vida, na estrofe final do poema associa toda esta ciência à mente humana e ao que ela pode ter de mais dilacerante: a loucura e o suicídio por transtornos emocionais entre família, dever, e desejo. Evoca aí o poeta a morte de Ofélia, paixão (?) de Hamlet, na peça homóloga de Shakespeare.

 

A cena descrita na última estrofe do poema foi pretexto para uma famosa pintura de John Everett Millais (1829-1896), com cuja imagem abre o artigo. A pintura original pertence à Tate Britain.

 

 

 

Lição sobre a água

 

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

 

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

 

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

 

 

in Antonio Gedeão, Obra Completa, 2ªedição, Relógio d’Água, Lisboa 2007.

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Leonor num poema motard de António Gedeão

25 Quarta-feira Nov 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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António Gedeão

Lambretta 550pxEcoando as glosas de Camões e Francisco Rodrigues Lobo ao mote Descalça vai para a fonte / Lianor pela verdura / Vai fermosa e não segura, (ver aqui artigo no blog), escreveu António Gedeão (1906-1997) uma saborosa viagem motard de uma Leonor com namorado.

Ao realismo da aventura e dos sentimentos que desencadeia, onde o poeta faz uso de um léxico variado que se diria serem termos sem poesia, acrescenta-se uma irrepreensível forma tradicional em redondilha.

Ainda que o poema escrito no final dos anos 50 evoque a popular motoreta italiana, ele dá conta da vertigem e prazer da velocidade sobre rodas que desde essa época não esmoreceu.

Ícone de liberdade, continua, mal chegada a adolescência, a povoar o imaginário com as aventuras do desconhecido, paisagens e amores incluídos.

Lambretta 1963

Deixo-vos com o poema.

 

Poema da auto-estrada

 

Voando vai para a praia

Leonor na estrada preta.

Vai na brasa, de lambreta.

 

Leva calções de pirata,

vermelho de alizarina,

modelando a coxa fina,

de impaciente nervura.

Como guache lustroso,

amarelo de idantreno,

blusinha de terileno

desfraldada na cintura.

 

Fuge, fuge, Leonoreta:

Vai na brasa, de lambreta.

 

Agarrada ao companheiro

na volúpia da escapada

pincha no banco traseiro

em cada volta da estrada.

Grita de medo fingido,

que o receio não é com ela,

mas por amor e cautela

abraça-o pela cintura.

Vai ditosa e bem segura.

 

Como um rasgão na paisagem

corta a lambreta afiada,

engole as bermas da estrada

e a rumorosa folhagem.

Urrando, estremece a terra,

bramir de rinoceronte,

enfia pelo horizonte

como um punhal que se enterra.

Tudo foge à sua volta,

o céu, as nuvens, as casas,

e com os bramidos que solta,

lembra um demónio com asas.

 

Na confusão dos sentidos

já nem percebe, Leonor,

se o que lhe chega aos ouvidos

são ecos de amor perdidos

se os rugidos do motor.

 

Fuge, fuge, Leonoreta

Vai na brasa, de lambreta.

 

Poema publicado pela primeira vez em Máquina de Fogo (1961) e transcrito de Antonio Gedeão, Obra Completa, 2ªedição, Relógio d’Água, Lisboa 2007.

Para os amantes do cinema clássico de Hollywood termino com o poster do filme Roman Holiday (1953), em português, Férias em Roma, de William Wyler, onde a princesa (Audrey Hepburn) se passeia, não em Lambretta mas em Vespa, suponho, guiada pelo jornalista Gregory Peck.

Saborosa comédia romântica com actualidade continuada sobre se um jornalista deve ou não divulgar publicamente o que sabe quando tem relevância pública, e quais as razões a que deve atender para não o fazer.

Para os interessados, o filme pode ser encontrado grátis online.

roman-holiday poster 600px

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António Gedeão – um poema

09 Sexta-feira Dez 2011

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Advento, António Gedeão, Poemas de Natal

Por tempos de Advento, tempo em que repensar o nascer se faz oportuno, alguns poemas surgirão dando o mote ao Natal que se avizinha.

Abro com um poema de António Gedeão (1906-1997) –  LÍRIO ROXO

 

LÍRIO ROXO

 

Viajei por toda a Terra

Desde o Norte até ao sul;

Em toda a parte do Mundo

Vi mar verde e céu azul.

 

Em toda a parte vi flores

Romperem do pé do chão,

Universais, como as dores

Do mundo

Que em toda a parte se dão.

 

Vi sempre estrelas serenas

E as ondas morrendo em espuma.

Todo o Sol um Sol apenas,

E a Lua sempre só uma.

 

Diferente de quanto existe

Só a dor que me reparte,

Enquanto em mim morro triste,

Nasço alegre em toda a parte.

 

 

Na sua admirável singeleza, este canto à unidade do Mundo conta e canta o óbvio que tendemos a esquecer: Em toda a parte vi flores / Romperem do pé do chão, / Universais, como as dores / Do mundo / Que em toda a parte se dão. qual seja a imensa contribuição da cultura ocidental dada ao mundo através do Cristianismo: todos os homens nascem iguais perante Deus. Cada um de nós diferente entre iguais: Diferente de quanto existe / Só a dor que me reparte, / Enquanto em mim morro triste, / Nasço alegre em toda a parte.

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