São os leitores do blog pessoas de austero gosto e ocupadas em elevados pensamentos. Procurando ir ao seu encontro, o que nem sempre se proporciona, transcrevo a visita que Brandão, abade irlandês, terá feito ao paraíso terreal no século VI.
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Eles navegaram quarenta dias no alto-mar
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Sob a protecção do rei divino
Se acercaram da neblina espessa
Que envolvia aquele lugar do Paraíso.
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Era a neblina tão cerrada e escura
Que engolia quem nela entrasse
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Ao acercarem-se viram a nuvem partir-se ao meio
E abrir um espaço com a largura de uma rua
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Durante três dias navegaram velozes
Por aquele caminho certo e seguro.
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E ao longe avistaram o Paraíso.
Viram primeiro uma alta muralha
Erguida a direito até às nuvens.
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Introduzidos que estão os leitores no quadro temporal e geográfico da viagem, talvez se perguntem agora:
Mas afinal quem era este Brandão?
O Abade Brandão, homem que era
De muito siso, prudente e sagaz,
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E que queria da vida?
Queria saber antes ainda da sua morte
Como é a casa onde só os bons podem entrar
E qual o lugar aos maus destinado
Pelos vistos Deus concedeu-lhe o desejo. Aí vai uma parte da história. O resto conta-a Benedeit em A viagem de São Brandão.
Visão do Paraíso
Abriu-se a porta de par em par
E eles entraram na verdadeira glória.
Seguiu adiante o formoso donzel
Que lhes foi mostrando o Paraíso.
Formosíssimos bosques rios e ribeiras
Cobrem e sulcam aquela terra.
São um jardim as pradarias
Florido tapete das mais belas flores.
Como em lugar piedoso e santo
As flores exalam suaves aromas.
Árvores frondosas flores preciosas
Variados frutos de raro perfume.
Não se vêem ortigas e cardos não há
Não crescem silvas nem matagais.
Árvores e ervas flores e plantas
Tudo desprende suave doçura.
As árvores dão frutos abrem-se as flores
Em cada dia de qualquer estação.
Os dias de verbosas todos os dias
Nas árvores medram as flores e a fruta
Nos bosques pastam veados sem conto
Saborosos peixes nadam nos rios
Nos Campos correm regatos de leite.
É uma terra abundante e farta!
Como o rocio caído do céu
O mel escorre de arbustos e juncos.
Generoso em ouro e pedras de preço
Ergue-se um monte como um tesouro.
Ali é eterno o esplendor do sol
O vento e a brisa não movem um pelo
E não há uma nuvem a pairar no ar
Roubando ao sol claridade e luz.
Quem ali morar penas não sofre
Nem há nenhum mal que lhe toque em sorte
Borrasca ou calor o gelo e o frio
A fome e a sede ou a vil miséria.
A sua riqueza será abundante
De tudo terá mais que à vontade.
Sem nada perder é certo e seguro
No dia a dia tudo há-de achar.
Brandão deleitou-se na alegria
Daquela hora que parece breve.
Ele bem queria ver e gozar
Demorar o olhar sem tempo nem pressa.
O donzel o levou por ali adentro
E muitas coisas lhe foi ensinando
E descrevendo com muitas minúcias
Prazeres e delícias que haverá de gozar.
Foi o donzel com o abade atrás
Até um monte de ciprestes coberto.
Do cume do monte ele viu maravilhas
Que estas palavras não podem contar.
Ele viu os anjos e também os ouviu
Cantar a alegria pela sua chegada.
Jamais escutara tão suave melodia
Tão branda e tão doce que fazia sofrer
E de seu natural não entendia
Não sabia gozar tão imensa glória.
Disse o donzel: “Regressemos agora!
Mais adiante não vos posso levar
Mais vos mostrar não é permitido
Embora haja ainda muito a saber.
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Tal como Brandão, quando ao paraíso voltar o resto verá, assim os leitores das outras maravilhas saberão quando desta vida partirem…
Transcrevi da tradução de José Domingos Morais, edição Assírio & Alvim, Lisboa 2005.
Acompanham o artigo imagens do tríptico de Hieronymus Bosch (1450-1516), O Jardim das Delícias.