Etiquetas
Hoje trago-vos um poeta raro, o austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), e uma tradução frequentemente fascinante dos seus versos.
Thomas Bernhard, porventura conhecido dos leitores como prosador, é, enquanto poeta, capaz de uma emoção surpreendente na forma como desenvolve um poema. À originalidade do verso acrescenta-se o percurso da ideia no poema, quiçá por vezes autobiográfica, que se resolve numa comoção
Evidentemente, nem todos os poemas conseguem este efeito no leitor, mas existirem alguns é já uma enorme alegria para quem gosta de ler a vida na poesia. Transcrevo cinco.
Num tapete de água
Num tapete de água
vou bordando os meus dias,
os meus deuses e as minhas doenças.
Num tapete de verdura
vou bordando os meus sofrimentos vermelhos,
as minhas manhãs azuis,
as minhas aldeias amarelas e os meus pães de mel amarelos também.
Num tapete de terra
vou bordando a minha efemeridade.
Nele vou bordando a minha noite
e a minha fome,
a minha tristeza
e o navio de guerra dos meus desesperos,
que vai deslizando p’ra mil outras águas,
para as águas do desassossego,
para as águas da imortalidade.
Altentann
O dia despe a sua camisa.
Sobe, nu, para o canteiro do jardim
e chama a si os pássaros.
Nas poças negras
fica agachado o seu rosto vermelho,
que os camponeses despedaçaram.
A erva crava lanças de sombra
no meu cérebro…
Na janela vizinha
está pousado um pássaro
como se fosse o guarda dos meus pensamentos,
até que o rude sono
me descalce os sapatos molhados.
Chuva de Verão
Pássaros calem-se,
nenhuma tarde
me consola, por cima
da ponte cai a chuva
na minha tristeza, nenhum
rumor de Verão
me faz mudar,
nenhum vento
me impede de dormir…
Amanhã de manhã
não quero ir
para debaixo de nenhuma árvore,
as minhas pálpebras anseiam pelo sono
do Inverno e da neve,
quero, à chuva,
regressar
às folhas
e às arcas sombrias.
Pássaros, calem-se, tenho frio,
a minha sombra
cresce por cima
da noite
para os bosques,
aí descansam
sob flores negras
os mortos,
os mortos errantes.
Cansado
Estou cansado…
Com as árvores entabulei conversas.
Com as ovelhas sofri o horror da seca.
Com os pássaros cantei nas florestas.
Amei as raparigas da aldeia.
Ergui os olhos para o Sol.
Vi o mar.
Trabalhei com o oleiro.
Engoli o pó da estrada.
Vi as flores da melancolia no campo do meu pai.
Vi a morte nos olhos do meu amigo.
Estendi a mão para as almas dos afogados.
Estou cansado…
de Nove salmos
(“A alma de Deus está nos pescadores“)
IX
Já não tenho medo.
Não tenho medo
do que há-de vir.
Extingui a minha fome,
bebi o meu tormento até à última gota,
a minha morte torna-me feliz.
Levo os meus peixes
para o monte.
Nos peixes está tudo
o que deixo ficar.
Nos peixes está a minha tristeza,
e o meu fracasso está nos peixes.
Direi
como é esplêndida a Terra, quando eu chegar,
como é esplêndida a Terra…
Sem precisar de ter medo…
Espero
que o Senhor me espere.
Transcritos de Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno, tradução e introdução de José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.
Pingback: Num tapete de água. Thomas Bernhard | Poemário
Obrigado e até breve.
GostarGostar
Beber a poesia de outras eras é tocar o que passou, o que resiste a poeira do tempo. Gostei de tudo, da sua escrita, da pintura, dos versos eternos de Bernhard. Estou te seguindo, desejo acompanhar sua poesia, sua maneira de ler o mundo.
GostarGostar