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Jean-Michel Basquiat (1960-1988) 04600pxEntendo, com Philip Larkin (1922-1985), que não há obras poéticas, mas poemas. Que a poesia é uma arte de singulares, e cada poema deve conter em si, da abertura ao fecho, a sua total significação. Fica o poema coxo se para a sua cabal compreensão são necessários conhecimentos de biografia do poeta ou detalhes de escola e enquadramento de época.

Na poesia de Larkin, em cada poema temos uma totalidade, seja um pequeno drama, um relato de frustração ou amargura, desenvolvendo-se em reflexões banhadas por uma ironia cáustica, e o todo contado em versos de uma clareza lapidar.

 

Transcrevo dois poemas, This Be The Verse e Sad Steps, em tradução de Rui Carvalho Homem.

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Seja assim o poema

 

 

Fodem-te a vida, o papá e a mamã,

  Mesmo que não seja essa a intenção.

Deixam-te todos os vícios que tenham

  E mais dois ou três, por especial atenção.

 

Mas no tempo deles também foram fodidos

  Por tolos trajando jaquetão e coco,

Que quando não estavam piegas ou hirtos

  Saltavam, raivosos, à veia, ao pescoço.

 

E assim é legada a felicidade,

  Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar.

Foge mal tenhas oportunidade

  E quanto a teres filhos — isso nem pensar.
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Tristes passos

 

Tropeçando de volta à cama depois de uma mija

Afasto as grossas cortinas e surpreendo-me

Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.

 

Quatro da manhã: jardins de sombras oblíquas, jazendo

Sob um céu cavernoso e rasgado pelo vento.

Há nisto uma faceta ridícula,

 

Na lua a lançar-se através de nuvens fugazes

E soltas como fumo de canhão, para logo se apartar

(A luz pétrea aguçando, cá em baixo, os telhados)

 

Alta e soberba e separada —

Pastilha de amor! Medalhão de arte!

Ó lobos da memoria! Imensidões! É certo,

 

Há um leve arrepio, quando se olha para o alto.

A dureza e a claridade e o alcance,

A singularidade de tão vasto e fixo olhar

 

É lembrança da força e da dor

De ser jovem; do que não se pode ter de novo,

Mas que é vivido por outros, em pleno, nalgum lugar.

 

in Philip Larkin, Janelas Altas, Edições Cotovia, Lisboa, 2004.

 

Termino com um episódio de memória, I Remember, I Remember, fazendo arco com o poema de abertura.

Como não encontrei versão portuguesa do poema, transcrevo apenas o original.

 

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I Remember, I Remember

 

 

Coming up England by a different line

For once, early in the cold new year,

We stopped, and, watching men with number-plates

Sprint down the platform to familiar gates,

“Why, Coventry!” I exclaimed. “I was born here.”

 

I leant far out, and squinnied for a sign

That this was still the town that had been ‘mine’

So long, but found I wasn’t even clear

Which side was which. From where those cycle-crates

Were standing, had we annually departed

 

For all those family hols? . . . A whistle went:

Things moved. I sat back, staring at my boots.

‘Was that,’ my friend smiled, ‘where you “have your roots”?’

No, only where my childhood was unspent,

I wanted to retort, just where I started:

 

By now I’ve got the whole place clearly charted.

Our garden, first: where I did not invent

Blinding theologies of flowers and fruits,

And wasn’t spoken to by an old hat.

And here we have that splendid family

 

I never ran to when I got depressed,

The boys all biceps and the girls all chest,

Their comic Ford, their farm where I could be

‘Really myself’. I’ll show you, come to that,

The bracken where I never trembling sat,

 

Determined to go through with it; where she

Lay back, and ‘all became a burning mist’.

And, in those offices, my doggerel

Was not set up in blunt ten-point, nor read

By a distinguished cousin of the mayor,

 

Who didn’t call and tell my father There

Before us, had we the gift to see ahead

‘You look as If you wished the place in Hell,’

My friend said, ‘judging from your face.’ ‘Oh well,

I suppose it’s not the place’s fault,’ I said.

 

‘Nothing, like something, happens anywhere.’

 

 

Transcrito de Collected Poems, Faber and Faber, Londres, 2003.

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As imagens mostram obras de Jean-Michel Basquiat (1960-1988).