Etiquetas
Entendo, com Philip Larkin (1922-1985), que não há obras poéticas, mas poemas. Que a poesia é uma arte de singulares, e cada poema deve conter em si, da abertura ao fecho, a sua total significação. Fica o poema coxo se para a sua cabal compreensão são necessários conhecimentos de biografia do poeta ou detalhes de escola e enquadramento de época.
Na poesia de Larkin, em cada poema temos uma totalidade, seja um pequeno drama, um relato de frustração ou amargura, desenvolvendo-se em reflexões banhadas por uma ironia cáustica, e o todo contado em versos de uma clareza lapidar.
Transcrevo dois poemas, This Be The Verse e Sad Steps, em tradução de Rui Carvalho Homem.
Seja assim o poema
Fodem-te a vida, o papá e a mamã,
Mesmo que não seja essa a intenção.
Deixam-te todos os vícios que tenham
E mais dois ou três, por especial atenção.
Mas no tempo deles também foram fodidos
Por tolos trajando jaquetão e coco,
Que quando não estavam piegas ou hirtos
Saltavam, raivosos, à veia, ao pescoço.
E assim é legada a felicidade,
Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar.
Foge mal tenhas oportunidade
E quanto a teres filhos — isso nem pensar.
Tristes passos
Tropeçando de volta à cama depois de uma mija
Afasto as grossas cortinas e surpreendo-me
Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.
Quatro da manhã: jardins de sombras oblíquas, jazendo
Sob um céu cavernoso e rasgado pelo vento.
Há nisto uma faceta ridícula,
Na lua a lançar-se através de nuvens fugazes
E soltas como fumo de canhão, para logo se apartar
(A luz pétrea aguçando, cá em baixo, os telhados)
Alta e soberba e separada —
Pastilha de amor! Medalhão de arte!
Ó lobos da memoria! Imensidões! É certo,
Há um leve arrepio, quando se olha para o alto.
A dureza e a claridade e o alcance,
A singularidade de tão vasto e fixo olhar
É lembrança da força e da dor
De ser jovem; do que não se pode ter de novo,
Mas que é vivido por outros, em pleno, nalgum lugar.
in Philip Larkin, Janelas Altas, Edições Cotovia, Lisboa, 2004.
Termino com um episódio de memória, I Remember, I Remember, fazendo arco com o poema de abertura.
Como não encontrei versão portuguesa do poema, transcrevo apenas o original.
I Remember, I Remember
Coming up England by a different line
For once, early in the cold new year,
We stopped, and, watching men with number-plates
Sprint down the platform to familiar gates,
“Why, Coventry!” I exclaimed. “I was born here.”
I leant far out, and squinnied for a sign
That this was still the town that had been ‘mine’
So long, but found I wasn’t even clear
Which side was which. From where those cycle-crates
Were standing, had we annually departed
For all those family hols? . . . A whistle went:
Things moved. I sat back, staring at my boots.
‘Was that,’ my friend smiled, ‘where you “have your roots”?’
No, only where my childhood was unspent,
I wanted to retort, just where I started:
By now I’ve got the whole place clearly charted.
Our garden, first: where I did not invent
Blinding theologies of flowers and fruits,
And wasn’t spoken to by an old hat.
And here we have that splendid family
I never ran to when I got depressed,
The boys all biceps and the girls all chest,
Their comic Ford, their farm where I could be
‘Really myself’. I’ll show you, come to that,
The bracken where I never trembling sat,
Determined to go through with it; where she
Lay back, and ‘all became a burning mist’.
And, in those offices, my doggerel
Was not set up in blunt ten-point, nor read
By a distinguished cousin of the mayor,
Who didn’t call and tell my father There
Before us, had we the gift to see ahead —
‘You look as If you wished the place in Hell,’
My friend said, ‘judging from your face.’ ‘Oh well,
I suppose it’s not the place’s fault,’ I said.
‘Nothing, like something, happens anywhere.’
Transcrito de Collected Poems, Faber and Faber, Londres, 2003.
As imagens mostram obras de Jean-Michel Basquiat (1960-1988).
Excelente combinação com Basquiat.
Becerra
GostarGostar
…Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.
Obrigada.
Luna
GostarGostar