Etiquetas
Fernando Assis Pacheco, Luis Pignatelli, Malevich, Pablo Neruda
Parece que hoje é o dia da Poesia para aqueles que não a lêem. Assinalemos tão auspiciosa data com um dos poemas da minha vida: Ode à Poesia de Pablo Neruda (1904-1973).
Para quem se interroga sobre questões utilitárias como por exemplo: Poesia? Para que serve? Pablo Neruda acompanha-o nesta ode:
…
Yo te pedí que fueras
utilitaria y útil,
como metal o harina,
dispuesta a ser arado,
herramienta,
pan y vino,
dispuesta, Poesía,
a luchar cuerpo a cuerpo
y a caer desangrándote.
…
E mais à frente responde. E em resultado permanece no coração dos homens que o leram.
Acompanham a poesia de Neruda algumas pinturas de Kazimir Malevich (1878-1935) representando trabalhadores manuais.
Não fora a sua extensão, acrescentaria o poema O Homem Invisível com que abre o livro Odes Elementares onde esta Ode à Poesia se contém. Fica o alvitre para um leitor curioso o procurar e este excerto:
…
eu não tenho importância
nem tempo
para os meus assuntos,
de noite e de dia
tenho que apontar tudo o que se passa,
e não esquecer ninguém.
É certo que de repente
me canso,
fico a olhar as estrelas,
estendo-me na relva, passa
um insecto cor de violino,
pouso o braço
sobre um pequeno seio
ou enlaço a cintura
da minha amada,
e vejo o veludo
cruel
da noite que estremece
com as suas constelações geladas,
então
sinto subir à minha alma
a onda dos mistérios,
a infância,
o pranto nos recantos,
a adolescência triste
e o sono invade-me,
durmo
…
(Tradução de Luis Pignatelli)
ODE À POESIA
Quase cinquenta anos
a caminhar
contigo, Poesia.
Ao princípio
enleavas-me os pés
e eu caía de borco
na terra escura
ou enterrava os olhos
no charco
para ver as estrelas.
Mais tarde estreitaste-me
com os dois braços da amante
e subiste
pelo meu sangue
como uma trepadeira.
No minuto seguinte
convertias-te em taça.
Belo
foi
ires escorrendo sem te consumires,
ires entregando a tua água inesgotável,
ires vendo que uma gota
caía sobre um coração queimado
e dessas mesmas cinzas revivia.
Porém
nem isso me bastou.
Tanto andei contigo
que te perdi o respeito.
Deixei de ver-te como
náiade vaporosa,
pus-te a fazer de lavadeira,
a vender pão nas padarias,
a fiar com as simples tecedeiras,
a bater o ferro na metalurgia.
E vieste comigo
andando pelo mundo,
mas já não eras
a florida
estátua da minha infância.
Falavas
agora
com voz férrea.
As tuas mãos
foram duras como pedras.
O teu coração
foi um abundante
manancial de sinos,
fizeste para mim pão com fartura,
ajudaste-me
a não cair de borco,
procuraste-me
companhia,
não uma mulher,
não um homem,
mas milhares, milhões.
Juntos, Poesia,
fomos
ao combate, à greve,
ao desfile, aos portos,
à mina,
e eu ri-me quando saíste
com a testa suja de carvão
ou coroada com serrim fragrante
das serrações.
Já não dormíamos na estrada.
Esperavam-nos grupos
de operários com camisas
recém-lavadas e bandeiras vermelhas.
E tu, Poesia,
até aí tão desgraçadamente tímida,
marchaste
à cabeça
e todos
se habituaram ao teu traje
de estrela quotidiana,
pois mesmo que algum relâmpago denunciasse a tua família
tu cumpriste a tarefa,
andando passo a passo com os homens.
Eu pedi-te que fosses
utilitária e útil,
como metal ou farinha,
pronta a ser arado,
ferramenta
pão e vinho,
pronta, Poesia,
a lutar corpo a corpo
e a cair esvaída em sangue.
E agora,
Poesia,
obrigado, esposa,
irmã ou mãe
ou noiva,
obrigado, onda do mar,
flor branca e bandeira,
motor de música,
grande pétala de oiro,
sino submarino,
celeiro inesgotável,
obrigado
terra de cada um
dos meus dias,
vapor celeste e sangue
dos meus anos,
porque me acompanhaste
da mais enrarecida altura
à simples mesa
dos pobres,
porque puseste na minha alma
sabor ferruginoso
e fogo frio,
porque me ergueste
à altura insigne
dos homens vulgares,
Poesia,
porque a teu lado
enquanto me gastava
tu foste sempre
aumentando essa frescura firme,
esse ímpeto cristalino,
como se o tempo
que a pouco e pouco me converte em terra
fosse deixar correr eternamente
as águas do meu canto.
Tradução de Fernando Assis Pacheco
ODE À POESIA (original)
Cerca de cincuenta años
caminando
contigo, Poesía.
Al principio
me enredabas los pies
y caía de bruces
sobre la tierra oscura
o enterraba los ojos
en la charca
para ver las estrellas.
Más tarde te ceñiste
a mí con los dos brazos de la amante
y subiste
en mi sangre
como una enredadera.
Luego
te convertiste
en copa.
Hermoso
fue
ir derramándote sin consumirte,
ir entregando tu agua inagotable,
ir viendo que una gota
caída sobre un corazón quemado
y desde sus cenizas revivía.
Pero no me bastó tampoco.
Tanto anduve contigo
que te perdí el respeto.
Dejé de verte como
náyade vaporosa
te puse a trabajar de lavandera,
a vender pan en las panaderías,
a hilar con las sencillas tejedoras,
a golpear hierros en la metalurgia.
Y seguiste conmigo
andando por el mundo,
pero tú ya no eras
la florida
estatua de mi infancia.
Hablabas
ahora
con voz férrea.
Tus manos
fueron duras como piedras.
Tu corazón
fue un abundante
manantial de campanas,
elaboraste pan a manos llenas,
me ayudaste a no caer de bruces,
me buscaste
compañía,
no una mujer,
no un hombre,
sino miles, millones.
Juntos, Poesía,
fuimos
al combate, a la huelga,
al desfile, a los puertos,
a la mina,
y me reí cuando saliste
con la frente manchada de carbón
o coronada de aserrrín fragante
de los aserraderos.
Y no dormíamos en los caminos.
Nos esperaban grupos
de obreros con camisas
recién lavadas y banderas rojas.
Y tú, Poesía,
antes tan desdichadamente tímida,
a la cabeza
fuiste
y todos
se acostumbraron a tu vestidura
de estrella cotidiana,
porque aunque algún relámpago delató tu familia
cumpliste tu tarea,
tu paso entre los pasos de los hombres.
Yo te pedí que fueras
utilitaria y útil,
como metal o harina,
dispuesta a ser arado,
herramienta,
pan y vino,
dispuesta, Poesía,
a luchar cuerpo a cuerpo
y a caer desangrándote.
Y ahora,
Poesía,
gracias, esposa,
hermana o madre
o novia,
gracias, ola marina,
azahar y bandera,
motor de música,
largo pétalo de oro,
campana submarina,
granero
inextinguible,
gracias,
tierra de cada uno
de mis días,
vapor celeste y sangre
de mis años,
porque me acompañaste
desde la más enrarecida altura
hasta la simple mesa
de los pobres,
porque pusiste en mi alma
sabor ferruginoso
y fuego frío,
porque me levantaste
hasta la altura insigne
de los hombres comunes,
Poesía,
porque contigo
mientras me fui gastando
tú continuaste
desarrollando tu frescura firme,
tu ímpetu cristalino,
como si el tiempo
que poco a poco me convierte en tierra
fuera a dejar corriendo eternamente
las aguas de mi canto.
Noticia bibliográfica:
Esta Ode à Poesia foi, que eu saiba, traduzida duas vezes para português, ambas as traduções feitas por poetas, e publicadas na mesma editora, Publicações D.Quixote.
Uma, a tradução de Fernando Assis Pacheco encontra-se na Antologia Breve publicada na saudosa colecção cadernos de poesia. A outra consta da tradução feita por Luis Pignatelli (1935-1993) de Odes Elementales, publicada em 1977 com o titulo Odes Elementares.