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Tag Archives: Pablo Neruda

Pablo Neruda — Ode ao Tempo

19 Segunda-feira Ago 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Hispano-americana

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Pablo Neruda

Dei-me folga, e aos leitores, destas conversas com poesia em fundo. Regresso hoje para, o que espero, uma maior assiduidade, lendo Uma Ode ao Tempo por Pablo Neruda (1904-1973).

…

Envelhecer vivendo

é belo

como tudo o que vivemos.

…

 

Sentir isto é prova de enorme sabedoria. A vida, feita de alegrias e desgostos é o único quadro onde podemos ser felizes. Procurá-la sempre, a felicidade, sem descanso, é o que temos ao nosso alcance. Neste caminho, percorrê-lo quanto possível na companhia de um grande amor é parte imperdível da existência, sabendo quanto 

…

Nos teus cabelos / enreda o tempo / os seus fios, / mas no meu coração / como uma madressilva / está a tua fragrância, / incandescente como o fogo. / …

 

Quando se ama, o sonho de envelhecer juntos, já antes o escrevi aqui, é o desejo mais belo que pode coroar um grande amor, ou como escreveu Pablo Neruda: 

…

Amor, o que importa

é que o tempo,

o mesmo que ergueu como duas chamas

ou espigas paralelas

o meu corpo e a tua doçura,

amanhã os mantenha

ou os desgarre

e com os seus mesmos dedos invisíveis

apague a identidade que nos separa

dando-nos a vitória

de um único ser final sob a terra.

 

E se o inexorável avanço do tempo mostra no físico os seus sinais, a fragrância, / incandescente como o fogo. / … que o alimenta está lá para o fazer durar. É esse amor sem idade e para além do efémero da beleza física, A tua idade dentro de ti

crescendo, / a minha idade dentro de mim / andando. / … que surge cantado na Ode ao Tempo de Pablo Neruda que antes citei, e a seguir transcrevo:

 

 

Ode ao Tempo

 

A tua idade dentro de ti

crescendo,

a minha idade dentro de mim

andando.

O tempo é resoluto,

não faz soar o sino,

cresce e caminha

por dentro de nós,

aparece

como um lago profundo

no olhar

e junto às castanhas

queimadas dos teus olhos

um filamento, a pegada

de um minúsculo rio,

uma estrelinha seca

subindo para a tua boca.

Nos teus cabelos

enreda o tempo

os seus fios,

mas no meu coração

como uma madressilva

está a tua fragrância,

incandescente como o fogo.

Envelhecer vivendo

é belo

como tudo o que vivemos.

Cada dia

para nós

foi uma pedra transparente,

cada noite uma rosa negra,

e este sulco no meu ou no teu rosto

é uma pedra ou uma flor,

recordação de um relâmpago.

Gastaram-se-me os olhos na tua formosura

mas tu és os meus olhos.

Sob os meus beijos talvez tenha fatigado

os teus seios,

mas todos viram na minha alegria

o teu resplendor secreto.

Amor, o que importa

é que o tempo,

o mesmo que ergueu como duas chamas

ou espigas paralelas

o meu corpo e a tua doçura,

amanhã os mantenha

ou os desgarre

e com os seus mesmos dedos invisíveis

apague a identidade que nos separa

dando-nos a vitória

de um único ser final sob a terra.

 

Tradução de Luis Pignatelli

in Odes Elementares, Publicações Om Quixote, Lisboa, 1977.

 

Abre o artigo a imagem de uma fotografia de família e que me é especialmente querida. Mostra ela os meus pais durante o namoro, e, como era de regra à época, à janela. Se vivo, o meu pai faria hoje 100 anos. E com a publicação da foto assinalo a efeméride. A minha mãe, lúcida, e moderadamente activa, já passados os noventa anos é o elo da cadeia com quem aprendo o que é envelhecer: os medos, a serena aceitação da progressiva perda de capacidades, e a infinita generosidade; afinal o que justifica estarmos vivos.

 

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Memórias, a vida, e Onde estará a Guilhermina, poema de Pablo Neruda

25 Quinta-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Hispano-americana

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Pablo Neruda

Folheio álbuns de fotografias antigas. E ali estou eu, treze anos, quatorze anos, e juntos, amigos de um tempo de descoberta e aprendizagem, que a vida dispersou. Alguns já partiram definitivamente.

…
e depois, depois, depois, depois
é tão longo contar as coisas.

Não tenho nada para acrescentar.
…

 

Não é nostalgia o que me invade. É um filme que me corre sob os olhos a velocidade acelerada, e de trás para a frente transporta as imagens pouco claras que a memória a custo guardou.
Desses tempos de descoberta, com outras, veio a poesia de Pablo Neruda (1904-1973), numa pequena antologia superiormente traduzida por Fernando Assis Pacheco, e nela um poema que à época pouco me disse e hoje recordo na imensa sabedoria do seu significado: Onde estará a Guilhermina?

 

Onde estará a Guilhermina?

Quando a minha irmã a convidou
e eu corri a abrir-lhe a porta,
entrou o sol, entraram estrelas,
entraram duas tranças de trigo
e dois olhos intermináveis.

Eu tinha catorze anos
e era orgulhosamente calado,
magro, severo, sisudo,
funéreo e cerimonioso:
vivia com as aranhas,
humedecido pela mata,
conheciam-me os coleópteros
e as abelhas tricolores,
adormecia com as perdizes
metido todo em hortelã.

Então entrou a Guilhermina
com dois relâmpagos azuis
que atravessaram o meu cabelo
e me cravaram como espadas
contra as paredes do Inverno.
Isto aconteceu em Temuco.
Lá para o Sul, na fronteira.

Passaram lentos os anos
pisando como paquidermes,
regougando como raposas loucas,
passaram impuros os anos
crescentes, poídos, mortuários,
e eu andei de nuvem pra nuvem,
de terra em terra, de olho em olho,
enquanto a chuva na fronteira
caía, com o mesmo fato.

Caminhou o meu coração
com intransmissíveis sapatos,
e digeri muitos espinhos:
não tive tréguas onde estive:
onde eu bati, bateram-me,
onde me mataram caí
e ressuscitei com frescura,
e depois, depois, depois, depois
é tão longo contar as coisas.

Não tenho nada para acrescentar.

Vim viver para este mundo.

Onde estará a Guilhermina?

Transcrito de Pablo Neruda, Antologia Breve, tradução e selecção de Fernando Assis Pacheco, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1969.

 

Naufragada a barca dos sonhos, fica-nos a vida vivida e a memória dela.

Abre o artigo a imagem de uma pintura infantil a assinalar o 25 de Abril de 1974. O desenho à época foi publicado em livro sem identificação da criança que o fez.

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Neruda — Ode ao Vinho

04 Sábado Ago 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Diego Velasquez, Pablo Neruda

Em Ode ao Vinho, Pablo Neruda (1904-1973) constrói um elogio do vinho de um ponto de vista diferente do habitual: enquanto com frequência se trata em poesia das consequências do vinho em cada um, ou das alegrias e panaceias que ele permite, como a certa altura o poeta relembra:
…
Às vezes
alimentas-te de recordações
mortais,
na tua onda
vamos de tumba em tumba,
canteiro de gelado sepulcro,
e choramos
transitórias lágrimas,
…

 

ainda assim, nela, o vinho é o sujeito absoluto:
Vinho da cor do dia,
vinho da cor da noite,
…
jamais coubeste numa taça,
numa canção, num homem,
num coro, …

 

É a partir do vinho, e não de quem o bebe, que as variadas realidades visitadas no poema se definem:
…
O vinho
move a Primavera,
cresce como uma planta de alegria,
os muros desmoronam-se,
os penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
…

 

Usando da eloquência poética que o distingue, Pablo Neruda dá-nos simultaneamente um vigoroso, comovido, e encantatório canto em louvor do vinho e das bênçãos que ele à humanidade traz:
…
Ó tu, jarro de vinho no deserto
com a doce amada minha,
disse o velho poeta.
Que o cântaro de vinho
ao peso do amor afogue o seu beijo.
…

 

E se a força embriagadora do vinho se associa inevitavelmente ao amor:
…
Meu amor, subitamente
a tua nádega
é curva plena
da taça,
o teu peito o cacho,
a luz do álcool a tua cabeleira,
as uvas os teus mamilos,
o teu umbigo o selo puro
estampado no teu ventre de ânfora,
e o teu amor a cascata
de vinho perene,
a claridade que inunda os meus sentidos,
o esplendor terrestre da vida.
…
ele é também pretexto e cimento da amizade e solidariedade entre os homens:
…
és também
amizade dos seres, transparência,
coro de disciplina,
abundância de flores.
…

 

E termina a Ode lembrando que o vinho é uma manifestação superior da simbiose do homem e da terra, —  Amo, quando se fala / à mesa, da luz de uma garrafa / de inteligente vinho. / … / e que o músculo homem aprenda, / no cerimonial do seu negócio, / a recordar a terra e os seus deveres, / … — , afinal entendimento que nos nossos dias parece estar definitivamente perdido, pelo menos no que à sustentabilidade global dos recursos terrestres respeita.
…
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou taça de topázio
ou colher de púrpura
que o Outono trabalhou
até encher de vinho as vasilhas
…

 

 

Ode ao Vinho de Pablo Neruda

Vinho da cor do dia,
vinho da cor da noite,
vinho com pés de púrpura
ou sangue de topázio,
vinho,
rutilante filho
da terra,
vinho, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um antigo veludo,
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso,
marinho,
jamais coubeste numa taça,
numa canção, num homem,
num coro, tens o sentido gregário,
ou pelo menos, comum.
Às vezes
alimentas-te de recordações
mortais,
na tua onda
vamos de tumba em tumba,
canteiro de gelado sepulcro,
e choramos
transitórias lágrimas,
mas
o teu formoso
traje de Primavera
é diferente,
o coração sobe aos ramos,
o vento move o dia,
nada fica
dentro da tua imóvel alma.
O vinho
move a Primavera,
cresce como uma planta de alegria,
os muros desmoronam-se,
os penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
Ó tu, jarro de vinho no deserto
com a doce amada minha,
disse o velho poeta.
Que o cântaro de vinho
ao peso do amor afogue o seu beijo.

Meu amor, subitamente

a tua nádega
é curva plena
da taça,
o teu peito o cacho,
a luz do álcool a tua cabeleira,
as uvas os teus mamilos,
o teu umbigo o selo puro
estampado no teu ventre de ânfora,
e o teu amor a cascata
de vinho perene,
a claridade que inunda os meus sentidos,
o esplendor terrestre da vida.

Mas tu, vinho da vida, não és

somente amor,
escaldante beijo
ou coração queimado,
és também
amizade dos seres, transparência,
coro de disciplina,
abundância de flores.
Amo, quando se fala
à mesa, da luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou taça de topázio
ou colher de púrpura
que o Outono trabalhou
até encher de vinho as vasilhas
e que o músculo homem aprenda,
no cerimonial do seu negócio,
a recordar a terra e os seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.

Tradução de Luis Pignatelli
in Odes Elementares, Publicações Om Quixote, Lisboa, 1977.

 

 

Poema original

 

Oda al Vino

Vino color de día,
vino color de noche,
vino con pies de púrpura
o sangre de topacio,
vino,
estrellado hijo
de la tierra,
vino, liso
como una espada de oro,
suave
como un desordenado terciopelo,
vino encaracolado
y suspendido,
amoroso,
marino,
nunca has cabido en una copa,
en un canto, en un hombre,
coral, gregario eres,
y cuando menos, mutuo.
A veces
te nutres de recuerdos
mortales,
en tu ola
vamos de tumba en tumba,
picapedrero de sepulcro helado,
y lloramos
lágrimas transitorias,
pero
tu hermoso
traje de primavera
es diferente,
el corazón sube a las ramas,
el viento mueve el día,
nada queda
dentro de tu alma inmóvil.
El vino
mueve la primavera,
crece como una planta la alegría,
caen muros,
peñascos,
se cierran los abismos,
nace el canto.
Oh tú, jarra de vino, en el desierto
con la sabrosa que amo,
dijo el viejo poeta.
Que el cántaro de vino
al beso del amor sume su beso.

Amor mio, de pronto

tu cadera
es la curva colmada
de la copa,
tu pecho es el racimo,
la luz del alcohol tu cabellera,
las uvas tus pezones,
tu ombligo sello puro
estampado en tu vientre de vasija,
y tu amor la cascada
de vino inextinguible,
la claridad que cae en mis sentidos,
el esplendor terrestre de la vida.

Pero no sólo amor,

beso quemante
o corazón quemado
eres, vino de vida,
sino
amistad de los seres, transparencia,
coro de disciplina,
abundancia de flores.
Amo sobre una mesa,
cuando se habla,
la luz de una botella
de inteligente vino.
Que lo beban,
que recuerden en cada
gota de oro
o copa de topacio
o cuchara de púrpura
que trabajó el otoño
hasta llenar de vino las vasijas
y aprenda el hombre oscuro,
en el ceremonial de su negocio,
a recordar la tierra y sus deberes,
a propagar el cántico del fruto.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Diego Velasquez (1599-1660), Triunfo de Baco.

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Talvez tenhamos tempo — poema de Pablo Neruda

30 Domingo Abr 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Eugène Delacroix, Pablo Neruda

De uma maneira transitória
agonizou ontem a verdade
e embora o saiba todo o mundo
todo o mundo bem o disfarça:
ninguém mandou algumas flores:
ela morreu e ninguém chora.

 

É com um descair de ombros e alguma resignação que uma forma de olhar o mundo, chamada de pós-verdade, se espalha como mancha de óleo, sujando a verdade dos factos e fazendo crer que verdadeiro e falso, no que à realidade respeita, são conceitos relativisáveis e susceptíveis de vestir a medida as nossas crenças. Apenas um exemplo de dimensões potencialmente trágicas: insistir em que os actos de terrorismo vividos nas sociedades europeias são devidos à recente vaga de refugiados, quando as provas documentais identificam como seus autores jovens nascidos ou tornados adultos nessas sociedades, evidencia uma recusa em aceitar a verdade dos factos e substituir estes pelo que condiz com o que se crê.
Trata-se, afinal, de um estado de negação em expansão social galopante, já conhecido da psicologia individual, mas que ganha dimensão explosiva enquanto psicologia de massas pelo potencial de mudar por muito tempo os valores e a organização da sociedade em que vivemos.
Talvez tenhamos tempo ainda começa por escrever Pablo Neruda (1904-1973) no poema que a seguir transcrevo, escrito para uma realidade diferente, e que é uma ajuda à reflexão sobre o papel de cada um neste rio que avança já pouco silencioso e ameaça tornar-se dilúvio. Que não venhamos a dizer: Não há nada a fazer agora: / todos perdemos a batalha.

 

 

Talvez tenhamos tempo

 

Talvez tenhamos tempo ainda
para ser e para ser justos.
De uma maneira transitória
agonizou ontem a verdade
e embora o saiba todo o mundo
todo o mundo bem o disfarça:
ninguém mandou algumas flores:
ela morreu e ninguém chora.

Entre o esquecimento e a aflição
um pouco antes do funeral
teremos a oportunidade
da nossa morte e nossa vida
para sair de rua em rua,
de mar em mar, de porto em porto,
de cordilheira em cordilheira,
e sobretudo de homem em homem,
a perguntar se a assassinámos
ou se a mataram os outros,
se foram os nossos inimigos
ou o nosso amor o assassino.
Porque a verdade já morreu
e agora podemos nós ser justos.

Antes devíamos lutar
com armas de calibre escuro
e por ferir-nos esquecemos
qual era o fim da nossa luta.

Nunca se soube de quem era
o sangue que nos envolvia,
acusamos outros sem cessar,
sem cessar fomos acusados,
eles sofreram e sofremos,
e depois de eles terem ganho
e termos ganho nós também
a verdade tinha morrido
de antiguidade ou violência.
Não há nada a fazer agora:
todos perdemos a batalha.

Por isso penso que talvez
por fim pudéssemos ser justos
ou por fim pudéssemos ser:
temos este último minuto
e depois mil anos de glória
para não ser e não voltar.

 

Publicação original em Memorial de La Isla Negra, 1964.
Transcrito de Pablo Neruda, Antologia, selecção e tradução de José Bento, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1998.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Eugène Delacroix (1798-1863), A liberdade guiando o povo.

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Uma ode à poesia de Pablo Neruda

21 Quarta-feira Mar 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Fernando Assis Pacheco, Luis Pignatelli, Malevich, Pablo Neruda

Parece que hoje é o dia da Poesia para aqueles que não a lêem. Assinalemos tão auspiciosa data com um dos poemas da minha vida: Ode à Poesia de Pablo Neruda (1904-1973).

Para quem se interroga sobre questões utilitárias como por exemplo: Poesia? Para que serve? Pablo Neruda acompanha-o nesta ode:

…

Yo te pedí que fueras
utilitaria y útil,
como metal o harina,
dispuesta a ser arado,
herramienta,
pan y vino,
dispuesta, Poesía,
a luchar cuerpo a cuerpo
y a caer desangrándote.

…

E mais à frente responde. E em resultado permanece no coração dos homens que o leram.

Acompanham a poesia de Neruda algumas pinturas de Kazimir Malevich (1878-1935) representando trabalhadores manuais.

Não fora a sua extensão, acrescentaria o poema O Homem Invisível com que abre o livro Odes Elementares onde esta Ode à Poesia se contém. Fica o alvitre para um leitor curioso o procurar e este excerto:

…

eu não tenho importância

nem tempo

para os meus assuntos,

de noite e de dia

tenho que apontar tudo o que se passa,

e não esquecer ninguém.

É certo que de repente

me canso,

fico a olhar as estrelas,

estendo-me na relva, passa

um insecto cor de violino,

pouso o braço

sobre um pequeno seio

ou enlaço a cintura

da minha amada,

e vejo o veludo

cruel

da noite que estremece

com as suas constelações geladas,

então

sinto subir à minha alma

a onda dos mistérios,

a infância,

o pranto nos recantos,

a adolescência triste

e o sono invade-me,

durmo

…

(Tradução de Luis Pignatelli)

ODE À POESIA

Quase cinquenta anos

a caminhar

contigo, Poesia.

Ao princípio

enleavas-me os pés

e eu caía de borco

na terra escura

ou enterrava os olhos

no charco

para ver as estrelas.

Mais tarde estreitaste-me

com os dois braços da amante

e subiste

pelo meu sangue

como uma trepadeira.

No minuto seguinte

convertias-te em taça.

 

Belo

foi

ires escorrendo sem te consumires,

ires entregando a tua água inesgotável,

ires vendo que uma gota

caía sobre um coração queimado

e dessas mesmas cinzas revivia.

Porém

nem isso me bastou.

Tanto andei contigo

que te perdi o respeito.

Deixei de ver-te como

náiade vaporosa,

pus-te a fazer de lavadeira,

a vender pão nas padarias,

a fiar com as simples tecedeiras,

a bater o ferro na metalurgia.

E vieste comigo

andando pelo mundo,

mas já não eras

a florida

estátua da minha infância.

Falavas

agora

com voz férrea.

As tuas mãos

foram duras como pedras.

O teu coração

foi um abundante

manancial de sinos,

fizeste para mim pão com fartura,

ajudaste-me

a não cair de borco,

procuraste-me

companhia,

não uma mulher,

não um homem,

mas milhares, milhões.

Juntos, Poesia,

fomos

ao combate, à greve,

ao desfile, aos portos,

à mina,

e eu ri-me quando saíste

com a testa suja de carvão

ou coroada com serrim fragrante

das serrações.

Já não dormíamos na estrada.

Esperavam-nos grupos

de operários com camisas

recém-lavadas e bandeiras vermelhas.

 

E tu, Poesia,

até aí tão desgraçadamente tímida,

marchaste

à cabeça

e todos

se habituaram ao teu traje

de estrela quotidiana,

pois mesmo que algum relâmpago denunciasse a tua família

tu cumpriste a tarefa,

andando passo a passo com os homens.

Eu pedi-te que fosses

utilitária e útil,

como metal ou farinha,

pronta a ser arado,

ferramenta

pão e vinho,

pronta, Poesia,

a lutar corpo a corpo

e a cair esvaída em sangue.

 

E agora,

Poesia,

obrigado, esposa,

irmã ou mãe

ou noiva,

obrigado, onda do mar,

flor branca e bandeira,

motor de música,

grande pétala de oiro,

sino submarino,

celeiro inesgotável,

obrigado

 terra de cada um

 dos meus dias,

 vapor celeste e sangue

 dos meus anos,

 porque me acompanhaste

 da mais enrarecida altura

 à simples mesa

 dos pobres,

 porque puseste na minha alma

 sabor ferruginoso

 e fogo frio,

 porque me ergueste

 à altura insigne

 dos homens vulgares,

 Poesia,

 porque a teu lado

 enquanto me gastava

 tu foste sempre

 aumentando essa frescura firme,

 esse ímpeto cristalino,

 como se o tempo

 que a pouco e pouco me converte em terra

 fosse deixar correr eternamente

as águas do meu canto.

Tradução de Fernando Assis Pacheco

 

ODE À POESIA (original)

Cerca de cincuenta años             
caminando
contigo, Poesía.
Al principio
me enredabas los pies
y caía de bruces
sobre la tierra oscura
o enterraba los ojos
en la charca
para ver las estrellas.
Más tarde te ceñiste
a mí con los dos brazos de la amante
y subiste
en mi sangre
como una enredadera.
Luego
te convertiste
en copa.

Hermoso
fue
ir derramándote sin consumirte,
ir entregando tu agua inagotable,
ir viendo que una gota
caída sobre un corazón quemado
y desde sus cenizas revivía.
Pero no me bastó tampoco.
Tanto anduve contigo
que te perdí el respeto.
Dejé de verte como
náyade vaporosa
te puse a trabajar de lavandera,
a vender pan en las panaderías,
a hilar con las sencillas tejedoras,
a golpear hierros en la metalurgia.
Y seguiste conmigo
andando por el mundo,
pero tú ya no eras
la florida
estatua de mi infancia.
Hablabas
ahora
con voz férrea.
Tus manos
fueron duras como piedras.
Tu corazón
fue un abundante
manantial de campanas,
elaboraste pan a manos llenas,
me ayudaste a no caer de bruces,
me buscaste
compañía,
no una mujer,
no un hombre,
sino miles, millones.
Juntos, Poesía,
fuimos
al combate, a la huelga,
al desfile, a los puertos,
a la mina,
y me reí cuando saliste
con la frente manchada de carbón
o coronada de aserrrín fragante
de los aserraderos.
Y no dormíamos en los caminos.
Nos esperaban grupos
de obreros con camisas
recién lavadas y banderas rojas.

Y tú, Poesía,
antes tan desdichadamente tímida,
a la cabeza
fuiste
y todos
se acostumbraron a tu vestidura
de estrella cotidiana,
porque aunque algún relámpago delató tu familia
cumpliste tu tarea,
tu paso entre los pasos de los hombres.
Yo te pedí que fueras
utilitaria y útil,
como metal o harina,
dispuesta a ser arado,
herramienta,
pan y vino,
dispuesta, Poesía,
a luchar cuerpo a cuerpo
y a caer desangrándote.

Y ahora,
Poesía,
gracias, esposa,
hermana o madre
o novia,
gracias, ola marina,
azahar y bandera,
motor de música,
largo pétalo de oro,
campana submarina,
granero
inextinguible,
gracias,
tierra de cada uno
de mis días,
vapor celeste y sangre
de mis años,
porque me acompañaste
desde la más enrarecida altura
hasta la simple mesa
de los pobres,
porque pusiste en mi alma
sabor ferruginoso
y fuego frío,
porque me levantaste
hasta la altura insigne
de los hombres comunes,
Poesía,
porque contigo
mientras me fui gastando
tú continuaste
desarrollando tu frescura firme,
tu ímpetu cristalino,
como si el tiempo
que poco a poco me convierte en tierra
fuera a dejar corriendo eternamente
las aguas de mi canto.

Noticia bibliográfica:

Esta Ode à Poesia foi, que eu saiba, traduzida duas vezes para português, ambas as traduções feitas por poetas, e publicadas na mesma editora,  Publicações D.Quixote.

Uma, a tradução de Fernando Assis Pacheco encontra-se na Antologia Breve publicada na saudosa colecção cadernos de poesia. A outra consta da tradução feita por Luis Pignatelli (1935-1993) de Odes Elementales, publicada em 1977 com o titulo Odes Elementares.

 

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