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De uma maneira transitória
agonizou ontem a verdade
e embora o saiba todo o mundo
todo o mundo bem o disfarça:
ninguém mandou algumas flores:
ela morreu e ninguém chora.

 

É com um descair de ombros e alguma resignação que uma forma de olhar o mundo, chamada de pós-verdade, se espalha como mancha de óleo, sujando a verdade dos factos e fazendo crer que verdadeiro e falso, no que à realidade respeita, são conceitos relativisáveis e susceptíveis de vestir a medida as nossas crenças. Apenas um exemplo de dimensões potencialmente trágicas: insistir em que os actos de terrorismo vividos nas sociedades europeias são devidos à recente vaga de refugiados, quando as provas documentais identificam como seus autores jovens nascidos ou tornados adultos nessas sociedades, evidencia uma recusa em aceitar a verdade dos factos e substituir estes pelo que condiz com o que se crê.
Trata-se, afinal, de um estado de negação em expansão social galopante, já conhecido da psicologia individual, mas que ganha dimensão explosiva enquanto psicologia de massas pelo potencial de mudar por muito tempo os valores e a organização da sociedade em que vivemos.
Talvez tenhamos tempo ainda começa por escrever Pablo Neruda (1904-1973) no poema que a seguir transcrevo, escrito para uma realidade diferente, e que é uma ajuda à reflexão sobre o papel de cada um neste rio que avança já pouco silencioso e ameaça tornar-se dilúvio. Que não venhamos a dizer: Não há nada a fazer agora: / todos perdemos a batalha.

 

 

Talvez tenhamos tempo

 

Talvez tenhamos tempo ainda
para ser e para ser justos.
De uma maneira transitória
agonizou ontem a verdade
e embora o saiba todo o mundo
todo o mundo bem o disfarça:
ninguém mandou algumas flores:
ela morreu e ninguém chora.

Entre o esquecimento e a aflição
um pouco antes do funeral
teremos a oportunidade
da nossa morte e nossa vida
para sair de rua em rua,
de mar em mar, de porto em porto,
de cordilheira em cordilheira,
e sobretudo de homem em homem,
a perguntar se a assassinámos
ou se a mataram os outros,
se foram os nossos inimigos
ou o nosso amor o assassino.
Porque a verdade já morreu
e agora podemos nós ser justos.

Antes devíamos lutar
com armas de calibre escuro
e por ferir-nos esquecemos
qual era o fim da nossa luta.

Nunca se soube de quem era
o sangue que nos envolvia,
acusamos outros sem cessar,
sem cessar fomos acusados,
eles sofreram e sofremos,
e depois de eles terem ganho
e termos ganho nós também
a verdade tinha morrido
de antiguidade ou violência.
Não há nada a fazer agora:
todos perdemos a batalha.

Por isso penso que talvez
por fim pudéssemos ser justos
ou por fim pudéssemos ser:
temos este último minuto
e depois mil anos de glória
para não ser e não voltar.

 

Publicação original em Memorial de La Isla Negra, 1964.
Transcrito de Pablo Neruda, Antologia, selecção e tradução de José Bento, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1998.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Eugène Delacroix (1798-1863), A liberdade guiando o povo.