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Folheio álbuns de fotografias antigas. E ali estou eu, treze anos, quatorze anos, e juntos, amigos de um tempo de descoberta e aprendizagem, que a vida dispersou. Alguns já partiram definitivamente.
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e depois, depois, depois, depois
é tão longo contar as coisas.
Não tenho nada para acrescentar.
…
Não é nostalgia o que me invade. É um filme que me corre sob os olhos a velocidade acelerada, e de trás para a frente transporta as imagens pouco claras que a memória a custo guardou.
Desses tempos de descoberta, com outras, veio a poesia de Pablo Neruda (1904-1973), numa pequena antologia superiormente traduzida por Fernando Assis Pacheco, e nela um poema que à época pouco me disse e hoje recordo na imensa sabedoria do seu significado: Onde estará a Guilhermina?
Onde estará a Guilhermina?
Quando a minha irmã a convidou
e eu corri a abrir-lhe a porta,
entrou o sol, entraram estrelas,
entraram duas tranças de trigo
e dois olhos intermináveis.
Eu tinha catorze anos
e era orgulhosamente calado,
magro, severo, sisudo,
funéreo e cerimonioso:
vivia com as aranhas,
humedecido pela mata,
conheciam-me os coleópteros
e as abelhas tricolores,
adormecia com as perdizes
metido todo em hortelã.
Então entrou a Guilhermina
com dois relâmpagos azuis
que atravessaram o meu cabelo
e me cravaram como espadas
contra as paredes do Inverno.
Isto aconteceu em Temuco.
Lá para o Sul, na fronteira.
Passaram lentos os anos
pisando como paquidermes,
regougando como raposas loucas,
passaram impuros os anos
crescentes, poídos, mortuários,
e eu andei de nuvem pra nuvem,
de terra em terra, de olho em olho,
enquanto a chuva na fronteira
caía, com o mesmo fato.
Caminhou o meu coração
com intransmissíveis sapatos,
e digeri muitos espinhos:
não tive tréguas onde estive:
onde eu bati, bateram-me,
onde me mataram caí
e ressuscitei com frescura,
e depois, depois, depois, depois
é tão longo contar as coisas.
Não tenho nada para acrescentar.
Vim viver para este mundo.
Onde estará a Guilhermina?
Transcrito de Pablo Neruda, Antologia Breve, tradução e selecção de Fernando Assis Pacheco, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1969.
Naufragada a barca dos sonhos, fica-nos a vida vivida e a memória dela.
Abre o artigo a imagem de uma pintura infantil a assinalar o 25 de Abril de 1974. O desenho à época foi publicado em livro sem identificação da criança que o fez.