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Em dois curtos poemas, Cristina Campo (1923-1977) e Wislawa Szymborska (1923-2012), nascidas no mesmo ano, cada uma à sua maneira conduz-nos pelo que de essencial a vida tem e nos faz.
Em tempos de existência diferentes, enquanto Wislawa Szymborska refere: Tu és bela – digo à vida – / mais esplêndida não podias, com Cristina Campo percorremos o depois: Ficou para trás, quente, a vida, / …
Na ironia mansa que perpassa em tanta da sua poesia Wislawa Szymborska guia-nos pelos nadas eternos da existência:
Só para não te ofender, / te irritar, descontrolar. / Eu saltito sorridente / há uns bons cem mil anos.
Allegro ma non troppo de Wislawa Szymborska
Tu és bela – digo à vida –
mais esplêndida não podias,
de rouxinóis e de rãs,
de formigas e sementes.
E tento ser-lhe agradável,
bajulá-la, olhá-la nos olhos.
Sou sempre a primeira a saudá-la,
de humilde expressão na fronte.
Vou-lhe saltando ao caminho,
da esquerda, da direita,
e fascinada me elevo,
e de enlevo me estatelo.
Que marinho este cavalo!
que silvestre é esta amora! –
nunca em tal houvera crido
se não tivesse nascido.
– Não encontro – digo à vida –
nada a que possa igualar-te.
Ninguém fará outra pinha,
nem melhor nem menos bem.
Louvo-te a generosidade, a criatividade,
a decisão e o rigor –
e mais ainda – e mais além –
a magia – a negra e a branca.
Só para não te ofender,
te irritar, descontrolar.
Eu saltito sorridente
há uns bons cem mil anos.
Arranho a vida pela bainha de uma folhita:
Terá parado? Ouviria?
Só uma vez, por um momento,
esqueceu-se de para onde ia?
Tradução de Júlio Sousa Gomes
Na desolada inquietação que acompanha a poesia de Cristina Campo lemos os restos, o que ficou:
Ficou a caricia que não encontro
…
Vamos ao poema
Ficou para trás, quente, a vida,
a marca colorida dos meus olhos, o tempo
em que ardiam no fundo de cada vento
mãos vivas cercando-me…
Ficou a caricia que não encontro
senão entre dois sonos, a infinita
minha sabedoria em pedaços. E tu, palavra
que transfiguravas o sangue em lágrimas.
Nem sequer um rosto trago
comigo, já trespassado em outro rosto
como esperança no vinho e consumado
em acesos silencios…
Volto sozinha
entre dois sonos lá’trás, vejo a oliveira
rósea nas talhas cheias de água e lua
do longo inverno. Torno a ti que gelas
na minha leve túnica de fogo.
Tradução de José Tolentino Mendonça
As imagens reproduzem pinturas de Paul Klee