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Não tenho animais de estimação e espanta-me sempre um pouco verificar as transferências afectivas que as pessoas fazem para os seus bichos. É um universo emocional que me é estranho e aceito sem julgar. De entre estes animais domésticos são gatos o que mais surge na poesia, sobretudo dando conta do seu comportamento voluntarioso e independente. As relações de afecto com os seus donos, se para os cães são comuns, com os gatos manifestam-se de forma talvez mais desprendida.

São disso testemunho indirecto dois poemas que a seguir transcrevo. De Guillaume Apollinaire (1880-1918), O Gato, do qual se lerão duas versões; depois, de Wislawa Szymborska (1923-2013), Gato em apartamento vazio. Dão conta os poemas de atmosferas de domesticidade onde o gato se integra. Revelam o convívio com o animal de estimação que traduz um sereno entendimento da sua presença no quotidiano humano.

Em Apollinaire lemos um quadro de desejo doméstico com mulher, gato, livros, e amigos:

 

O Gato

Na minha casa desejo ter
Uma mulher que imponha a sua razão
Um gato passeando por entre os livros
E porque sem eles não posso viver
Amigos seja qual for a estação

in Assinar a Pele — antologia de poesia contemporânea sobre gatos
(organização de João Luís Barreto Guimarães)

 

Poema original

Le chat

Je souhaite dans ma maison :
Une femme ayant sa raison,
Un chat passant parmi les livres,
Des amis en toute saison
Sans lesquels je ne peux pas vivre

in Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée

 

e agora uma versão mais perto da letra do original:

O Gato

Desejo ter em minha casa:
Uma mulher no seu juízo,
Um gato passeando-se entre livros,
Amigos para o que der e vier
Porque sem eles não sei viver.

Tradução de Maria Gabriela Llansol,
in Mais Novembro que Setembro, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2001.

 

No poema de Wislawa Szymborska, Gato em apartamento vazio, conta-se a perplexidade da perda, no universo do gato, quando a morte altera as rotinas que dão o sentido dos dias:

 

Gato em apartamento vazio

Morrer — isso não se faz ao gato.
Pois que há-de um gato fazer
num apartamento vazio.
Ir arranhando as paredes.
Roçar-se por entre os móveis.
Por aqui nada mudou
mas está mais que mudado.
As coisas estão nos sítios,
mas os sítios outro são.
E nem se acende a luz pela noitinha.

Ouvem-se passos na escada,
todavia, não os tais.
A mão que põe no pratinho o peixe
também não é a que antes punha.

Algo aqui não acontece
às horas que acontecia.
Há algo aqui que não corre
como devia correr.
Alguém aqui esteve, esteve,
e agora teima em não estar.

Vasculhados todos os armários.
Percorridas todas as prateleiras.
Uma vez verificado o chão sob a alcatifa.
Contra todas as proibições até,
espalhados os papéis.
Que é que fica ainda por fazer.
Dormir e esperar.

Tradução de Júlio Sousa Gomes
in Paisagem com grão de areia, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 1998.

Exemplar ilustração de como tudo muda com a morte quando parece nada ter mudado olhando a imobilidade das coisas.

O gato da fotografia surpreendi-o certa tarde, junto ao mar, a olhar para mim enquanto fotografava. Aos especialistas deixo a interpretação desse olhar.