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Serradura e Cinco Horas — poemas de Mário de Sá Carneiro

18 Domingo Nov 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Mário de Sá-carneiro, Otto Dix

Entre o que julgámos querer ser e fazer, e o que a realidade nos mostra que concretizámos, vai o abismo que a vida vivida cavou. Quase sempre os sonhos de acção e aventura terminam no desejo irreprimível de sossego e conforto:

…
Pois é assim: a minha Alma / Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma, /  E hoje sonha só pelúcias.
…

 

Este conflito entre acção desejada e vida de monotonia referido por Mário de Sá Carneiro (1890-1916) no poema Serradura, cedo ou tarde atravessa os leitores de qualquer época. Poucos conseguem fazer o balanço do seu viver e concluir por um acerto entre o desejado e o feito.

Uma sensação de desacerto entre o indivíduo e a vida que lhe foi dado viver atravessa a poesia de Mário de Sá Carneiro e nos poemas Serradura e Cinco Horas encontramos exemplo eloquente:

 

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
…

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

 

Isto diz a abrir o poema Serradura, para, no poema Cinco Horas, a certa altura referir:

… / Nos cafés espero a vida / Que nunca vem ter comigo: / …

 

Na letra destes poemas não encontramos densidade de reflexões a propósito do que acima referi, mas é antes na trivialidade dos seus relatos que elas se escondem.

Serradura, poema variadamente colorido de acção hipotética, revela na sua ironia mordaz, a impotência do indivíduo no discernir do que na vida melhor se lhe ajusta:

 

Serradura

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o “Matin” de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da “Capital”
Pelo nosso Júlio Dantas —
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!…

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra uma porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil — partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar ”Viva a Alemanha”…
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade…

Vou deixá-la — decidido —
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.

 

(Nota à margem: serradura, pó de madeira, deitava-se à época no chão de cafés e tabernas modestos para absorver líquidos entornados e facilmente os varrer para o lixo.)

 

 

Em Cinco Horas, continuamos neste universo amargamente irónico da impotência de si, aqui trazendo a certa altura os outros, para revelar em cúmulo, a incapacidade perante uma vida de relação, cultivando o indivíduo tão só a atitude de espectador de si mesmo com os outros em fundo.

 

Cinco Horas

Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto… A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e fresca é!

Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais.)

Sobre ela posso escrever
Os meu versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber…

Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.

Ou acendendo cigarros,
— Pois há um ano que fumo —
[Imaginando]* presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente…)

Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

E o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha ideia persiste
E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades
A minha recordação,
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades…

(Que história de Oiro tão bela
Na minha vida [aportou]*:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou…)

Nos cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
— Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.

Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
Pra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.

— Cafés da minha preguiça,
Sois hoje — que galardão! —
Todo o meu campo de acção
E toda minha cobiça.

 

* Ainda que as edições consultadas escrevam imaginário e abortou, a narrativa poética que caracteriza o poema leva-me a pensar que as palavras deveriam ser imaginando e aportou, sendo as palavras impressas ao longo de variadas edições, gralhas tipográficas que terão passado de edição em edição.

O poema apenas teve edição póstuma, tendo sido publicado pela primeira vez no livro Indícios de Oiro em 1937, também depois da morte de Fernando Pessoa, executor testamentário do poeta. Apenas a consulta do manuscrito original o permitirá esclarecer.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Otto Dix (1891-1969), Retrato da jornalista Sylvia von Harden.

 

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Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) – Quase

14 Sábado Jan 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Mário de Sá-carneiro

Prossigo na escolha de um cânone pessoal de poesia com Quase de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916).

QUASE

Um pouco mais de sol –  eu era brasa,
Um pouco mais de azul –  eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho –  ó dor! –  quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim –  quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dor de ser –  quase, dor sem fim… –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol –  vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

……………………………………………………
……………………………………………………

Um pouco mais de sol –  e fora brasa,
Um pouco mais de azul –  e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Paris, 13-5-1913

 

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Morro faz já bastante tempo – caminho para a poesia de Ângelo de Lima

28 Quarta-feira Set 2011

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Ângelo de Lima, Herberto Helder, Mário de Sá-carneiro

Sirvo-me do belo verso de Herberto Hélder:  Morro faz já bastante tempo e do poema que vos deixei no blog antes de férias, como pretexto para visitar a poesia de Ângelo de Lima (1872-1921), nesse poema também evocada, através do  verso com que abre um dos mais belos sonetos da língua portuguesa:

Pára-me de repente o pensamento

e que no final transcrevo.

A biografia do poeta é conhecida nos aspectos dramáticos da sua loucura(?) com o relatório do Dr. Miguel Bombarda como peça chave, e dispenso-me de o reproduzir.

Inicio esta curta viagem com o poema A MEU PAI, poema onde a verdade emocional exçuda, transmitindo de forma ímpar a desolada sensação de estar só no mundo com este verso:

Ai! que é tão triste não se ter ninguém!

A pungência do poema, qual  grito de socorro, toca-nos para além do conhecimento da biografia do Poeta.

A MEU PAI
(No Santo Dia Dos Finados)

Pai! quando às horas do findar do dia,
A bruma vaga cobre, triste, o Espaço
E a mim me envolve na melancolia…

Pai! Diz-me: sabes que secreto laço
Me prende, a mim, que vago n’este mundo,
Triste, avergado sob o atroz cansaço,
A ti, que pairas lá no céu profundo?…

Pai! sou teu filho! – sou teu filho, sinto…
Não me renegues – sou teu filho, oh! Pai!…
Vês como eu vago n’este labirinto,
Perdido, triste, alucinado, – aí! –
Tal como a nave em que Israel vagou,
E, erma, ao acaso, sobre as aguas vai,
Sem já saber que força me guiou,
Sem que me guie já vontade alguma,
N’esta derrota que seguindo vou?

Pois, como à nave que não tem nenhuma,
Nenhuma sombra de tripulação,
Sorri ainda Vésper, de entre a bruma…
Tal ao meu enlutado coração,
Que já não guia nem um só anseio,
Sorri, ao longe, de entre a cerração,
Oh! Pai! O afecto do teu nobre seio!

Pai! meu sincero, meu finado amigo!…
Dormes, no Nada majestoso e triste,
Ou vives ‘inda, como a Dor existe?…

Pai! quem me dera, logo, ir ter contigo!…

Pai! A Desgraça se enlaçou comigo,
Desde que, um dia, oh Pai! tu me fugiste!…
Pai!, se, n’um voo, pelo céu, partiste,
Dize-me o rumo, quero ver se o sigo…

Pai! Tua pobre campa, tão singela,
Talvez não tenha, como as outras têm,
No dia de hoje, quem n’a enflore a ela…

Ai! que é tão triste não se ter ninguém!

Ao menos, Eva, o nosso encanto, – vê-lá? –
E Pedro, e Vasco… São contigo além!

Eva, Pedro e Vasco, referidos no poema eram irmãos do autor.

O poema, tal como os restantes que transcrevo, foi retirado da edição das POESIAS COMPLETAS organizada por Fernando Guimarães e publicada pela Editorial Inova s/d (1971?).

Para uma Obra Poética conhecida de apenas 43 poemas, o conjunto de poemas notáveis é impressionante. Escolho apenas quatro: onde a condicão humana é questionada por um lado,

Sob a luz calma e suave / Dos mundos do sentimento… ,

ou então na singularidada da sua solidão e abandono

Na Douda Correria… em que, levado… / – Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento[.]

Comecemos pelo poema 10 da edição mencionada:

Vai, sobre o sombrio abismo

D’esta existência terrena…

– Nas asas d’um misticismo

E paira a sonhar, serena!…

 

Sob a luz calma e suave

Dos mundos do sentimento…

Paira tranquila, alma… ó ave!

Sacia o longo tormento!…

 

– Sonha!… e sonhando te esquece!…

– Lá no sonho recatado –

A Rosa, o Lírio entreteces

D’um abraço embalsamado[.]

 

Lá minh’alma, alma adorada[.]

Mulher na terra caída[.]

Anjo que em meio à jornada

Sentiste a asa partida…

 

Lá minh’alma a ti cingindo,

Perfumada de amorosa,

No excelso cônjuge infindo,

Do Lírio, d’est’alma, ó Rosa!…

 

Fiquemos eternamente

Asa n’asa conjugada

– Se não tens nota ascendente,

Queda ó guitarra calada!

 

Sonhos

Sonho suave e bom que me envolveste

Não me deixes sózinho sobre a terra[.]

Se vais, contigo esta minha alma encerra,

Leva-a contigo a Deus d’onde vieste.

 

Como do céu minha alma assim mereceste

Que por ti d’ele um sonho se descerra

Ai com que frenesi que a ti se aferra,

Sonho, a ti sonho, esta alma a que desceste.

 

Sonhos que em vossas asas me tomais

Em meio do caudal em que derivo

E em vir a mim dos outros me estremais.

 

Sonho, ó ultimo sonho de que vivo[,]

Ai  não me deixes tu[,] como os demais

Retém-no em meu seio – ó meu senhor! – cativo.

Sozinho

Quando eu morrer m’envolva a Singeleza,

Vá sem Pompa a caminho do coval,

Acompanhe-me apenas a tristeza [,]

Não vá do bronze o som de val’ em val!

 

Chore o céu sobre mim de orvalho as bagas [,]

Luz do sol-posto fulja em seu cristal,

Cantem-me o “dorme em paz” ao longe as vagas.

 

Gemente a viração entoe o “Amém” [,]

Vá assim té ermas, afastadas plagas…

Lá… fique eu só!

                                               Não volte lá ninguém!

Por estas alturas, um outro louco na sua lucidez – Mário de Sá Carneiro –  escrevia:

Quando eu morrer batam em latas, / rompam aos berros e aos chicotes –  / …

Comuns na vontade de encenar a morte, são opostos os desejos, reflexo de naturezas bem diferentes.

Terminemos com o poema mais famoso de Ângelo de Lima:

Pára-me de repente o Pensamento…

– Como se de repente sofreado

Na Douda Correria… em que, levado…

– Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento[.]

 

– Pára Surpreso… Escrutador… Atento

Como pára um Cavalo Alucinado

Ante um Abismo… ante seus pés rasgado…

– Pára… e Fica… e Demora-se um Momento…

 

Vem trazido na Douda Correria

Pára à beira do Abismo e se demora

 

E Mergulha na Noute, Escura e Fria

Um Olhar d’Aço, que na Noute explora…

 

– Mas a Espora da dor seu flanco estria…

 

E Ele Galga… e Prossegue… sob a Espora!

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