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O poema de Fernando Pessoa — NOTAS SOBRE TAVIRA — que hoje transcrevo, é uma meditação de meio da vida, no confronto de uma paisagem urbana de infância com os sonhos aí sonhados, perante a realidade reencontrada:
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Paro deante da paisagem, e o que vejo sou eu.
Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos —
Senhor do mundo —
É aos 41 que desembarco do comboio indolentao.
O que conquistei? Nada.
Nada, aliás, tenho a valer conquistado.
Trago o meu tédio e a minha fallencia physicamente no pesar-me mais a mala…
Lemos nele uma reflexão sobre a passagem do tempo desligada da realidade física da cidade hoje, ainda que o velho, que se fez novo, permaneça:
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Tudo é velho onde fui novo.
Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.
A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.
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Nestes dias de deslumbrante luz, passeei demoradamente em Tavira. Se por um lado os lugares me acendem a memória, por outro, é o conforto de uma continuidade cultural a que chamaria raízes, que a cada volta de uma esquina se revela.
Em longos, saboreados e encantados passeios, surpreendi vistas novas de panoramas que comigo vivem desde a infância, e ao olhar outra vez o mesmo, é a dignidade na modéstia da paisagem urbana que intensamente me comove.
O branco das paredes exposto ao brilho de um sol intenso, entontece a vista numa inesperada embriguês com o azul do céu em fundo, e de cada ruela espreita em volumes de sábia arquitectura, o jogo dos telhados plantados de rendilhadas chaminés.
Tavira e Fernando Pessoa, por via de Álvaro de Campos, são hoje uma associação mental e turística que a cidade cultiva, sendo que esta cruza pontualmente a sua obra.
NOTAS SOBRE TAVIRA
[Ms.] 8/12/1931
Cheguei finalmente á villa da minha infancia.
Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei.
(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado).
Tudo é velho onde fui novo.
Dede já — outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos predios —
Um automovel que nunca vi ( não os havia antes)
Estagna amarello escuro ante uma porta entreaberta.
Tudo é velho onde fui novo.
Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.
A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.
Paro deante da paisagem, e o que vejo sou eu.
Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos —
Senhor do mundo —
É aos 41 que desembarco do comboio indolentao.
O que conquistei? Nada.
Nada, aliás, tenho a valer conquistado.
Trago o meu tédio e a minha fallencia physicamente no pesar-me mais a mala…
De repente avanço seguro, resolutamente.
Passou toda a minha hesitação
Esta villa da minha infancia é afinal uma cidade estrangeira.
(Estou á vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada)
Sou forasteiro, tourist, transeunte.
É claro: é isso que sou.
Até de mim, meu Deus, até de mim.
Conservei a ortografia do original.
NOTAS SOBRE TAVIRA é um poema não assinado, nem incluído no envelope A. de Campos no espólio da Biblioteca Nacional, e foi pela primeira vez publicado por Teresa Rita Lopes em 1990, quase em simultâneo nos livros álvaro de campos Vida e Obras do Engenheiro e no precioso Pessoa por conhecer, Textos para um novo mapa, ambos edição de Editorial Estampa.