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Aquela Noite contada por Almeida Garrett

03 Terça-feira Mar 2015

Posted by viciodapoesia in A mulher imaginada

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Almeida Garrett, Klimt

Klimt_Gustav-Allegory_of_SculptureO homem desde que se pensou, sonhou a mulher, e exprimiu-o de forma artística.  Nesta busca pela essência do feminino imaginou-a divina, e em Vénus cristalizou poder, beleza e prazer do sexo, origem e destino da humanidade toda, ou como escreveu aos 22 anos num Hino a Vénus o nosso poeta de hoje, Almeida Garrett (1799-1854):

“Tudo o que amável / Encerra o mundo,

Vem do teu espírito / Doce e fecundo.”

 

A Garrett ofereceu a vida bastas oportunidades de experiência, e dela tivemos esse poema maior da nossa literatura Aquela Noite, incluído em Folhas Caídas, livro único de obsessão carnal, sem rodeios de complicações madrigalescas, nem mantos de impostura … como o define José Gomes-Ferreira numa notável introdução à edição comemorativa do centenário da publicação do livro, e  onde o Poeta-com-remorsos-de-amar dá conta de uma certa noite que:

“Não deixou outra memória / Dessa noite de loucura, /

De sedução, de prazer… / Que os segredos da ventura /

Não são para se dizer.”

 

E agora, o poema:

AQUELA NOITE

Era a noite da loucura,

Da sedução do prazer,

Que em sua mantilha escura

Costuma tanta ventura,

Tantas glórias esconder.

Os felizes… e ai! São tantos!…

– Eu por tantos os contava!

Eu que o sinal de meus prantos

Do aflito rosto lavava –

Os felizes presunçosos

Iam nos coches ruidosos

Correndo aos salões doirados

De mil fogos alumiados,

Donde em torrentes saía

A clamorosa harmonia

Que a festa, ao prazer tangia.

Eu sentia esse ruido

Como o confuso bramar

De um mar ao longe movido

Que à praia vem rebentar;

E disse comigo: – “Vamos,

Os lutos d’alma dispamos,

À festa hei-de ir também eu!”

E fui; e a noite era bela,

Mas não vi a minha estrela

Que eu sempre via no céu:

Cobriu-a de espesso véu

Alguma nuvem a ela,

Ou era que já vendado

Me levava o negro fado

Onde a vida me perdeu?

Fui; meu rosto macerado,

A funda melancolia

Que todo o meu rosto revia,

Qual o ataúde levado

A egípcio festim, dizia:

– “Como vós fui eu também;

Folgai que a morte aí vem!”

Dizia-o, sim, meu semblante,

Que, onde eu chegava, o prazer

Cessava no mesmo instante;

E o lábio que ia a dizer

Doçuras de amor gelava;

E o riso que ia a nascer

Na face linda, expirava.

Era eu – e a morte em mim,

Que só ela espanta assim!

Quantas mulheres tão belas

Ébrias de amor e desejos,

Quantas vi saltar-lhe os beijos

Da boca ardente e lasciva!

E eu, que ia chegar-me a elas…

Para logo a fronte esquiva

De recatos se envolvia

E, toda pudor, tremia.

Quantas o seio anelante,

Nu, ardente e palpitante

Andavam como entregando

À cobiça mal desperta,

Gasta já e desdenhosa,

Dos que as estavam mirando

Com vaga luneta incerta

Que diz: – “Aquela é formosa,

Não se me dava de a ter.

E esta? É só baronesa,

Vale menos que a duquesa:

Não sei a qual atender.”

E a isto chamam prazer!

A grande ventura é esta?

Vale a pena vir à festa

E vale a pena viver.

Como então quis à tristura

Do meu viver isolado!

Fique-se embora a ventura,

Que eu quero ser desgraçado.

Levantei alto a cabeça,

Senti-me crescer – e a frente

Desanuviar-se contente

Do feio negrume espesso

Que assustava aquela gente.

Logo os sorrisos caiam

Para o meu lado também;

Já como um dos seus me viam,

Que em mim não viam ninguém.

Eu, de olhos desencantados,

A elas, como as eu via!

Meus entusiasmos passados,

Oh! Como eu deles me ria!

Frio o sarcasmo saia

Dos meus lábios descorados,

E sem dó e sem pudor

A todas falei de amor…

Do amor bruto, degradante

Que no seio palpitante,

Na espádua nua se acende…

Amor lascivo que ofende,

Que faz corar … Elas riam

E oh que não, não se ofendiam!

Mas a orquestra bradou alta:

– “Festa, festa! E salta, salta!”

Os seus guizos delirantes

Sacode louca a Folia…

Adeus, requebros de amantes!

Suspiros, quem nos ouvia?

As palavras meias ditas,

Meias nos olhos escritas,

Voavam todas perdidas

Dispersas, rotas no ar;

Que se foram almas, vidas,

Tudo se foi a valsar.

Quem é esta que mais voltas

Gira, gira sem cessar?

Como as roupas leves, soltas,

Aéreas leva a ondular

Em torno à forma graciosa,

Tão flexível, tão airosa,

Tão fina! – Agora parou,

E tranquila se assentou.

Que rosto! Em linhas severas

Se lhe desenha o perfil;

E a cabeça, tão gentil,

Como se fora deveras

A rainha dessa gente,

Como a levanta insolente!

Vive Deus! Que é ela… aquela,

A que eu vi na tal janela,

E que triste me sorria

Quando passando me via

Tão pasmado a olhar para ela.

A mesma melancolia

Nos olhos tristes – de luz

Oblíqua, viva mas fria;

A mesma alta inteligência

Que da face lhe transluz;

E a mesma altiva impaciência

Que de tudo, tudo cansa,

De tudo o que foi, que é,

E na erma vida só vê

O raio da vaga esp’rança.

– “Pois isto sim que é mulher”

Disse eu – “e aqui há que ver”.

Já vinha a pálida aurora

Anunciando a manhã fria,

E eu falava e eu ouvia

O que até àquela hora

Nunca disse, nunca ouvi…

Toda a memória perdi

Das palavras proferidas…

Não eram destas sabidas,

Nem quais eram não no sei…

Sei que a vida era outra em mim,

Que era outro ser o meu ser,

Que uma alma nova me achei

Que eu bem sabia não ter.

E daí? – Daí, a história

Não deixou outra memória

Dessa noite de loucura,

De sedução, de prazer…

Que os segredos da ventura

Não são para se dizer.


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Beijos mil – o poema V de Catulo

03 Quarta-feira Abr 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Catulo, Klimt, Rodin

Rodin - O beijo - terracota

Permanece no imaginário de quem o leu como forma superior de dizer do amor e da sua paixão o Carme V de Catulo (Gaius Valerius Catullus, 87 ou 84 a.C. – 57 ou 54 a.C.), ad Lesbiam.

O eterno do desejo e a sua urgência ganha forma poética neste acontecer de beijos dados e desejados, sucedendo-se pela vida e para além dela.

Objecto de variadas traduções ao longo dos tempos, encontrou na recente tradução de José Pedro Moreira e André Simões um comovedor equilíbrio entre fidelidade textual e poesia.

Vivamos, Lésbia minha, e amemos.
A má-língua dos velhos mais sisudos
para nós não valha mais do que um tostão.
Podem os dias morrer e nascer:
quando a breve luz de vez morrer
noite perpétua devemos juntos dormir.
Dá-me beijos mil, e depois cem,
e depois mil outros, e depois mais cem,
e depois ainda mais mil, e depois cem.
Depois, quando muitos dermos,
baralhá-los-emos para não sabermos quantos,
ou não possa homem mau invejar-nos
ao saber que quantos beijos demos.

Antes desta versão, dera-nos Jorge de Sena a leitura com que por décadas vivemos o poema:

Vivamos, minha Lésbia, e nos amemos.
Sem que o que digam murmurantes velhos
Importe para nós mais que uma palha.
Podem morrer e renascer os sóis.
A nós, quando se apaga a breve luz,
Noite é perpétua que dormir havemos.
Oh dá-me beijos mil, depois um cento,
Depois mais outros mil, e um outro cento,
Depois ainda outros mil, e mais um cento.
Depois, quando os milhares forem já muitos,
Erraremos a conta, a não saibamos,
Para que a inveja não nos leve a mal,
Sabendo quanto foi de beijos dado.

Também Maria Helena da Rocha Pereira, com a probidade da sua oficina, o traduziu:

Vivamos, minha Lésbia, e amemos,
e os murmúrios ds velhos mais severos
dêmos-lhes a todos o valor de um cêntimo!
Os sóis podem extinguir-se e voltar:
mas nós, uma vez que se extingue a breve luz do dia,
temos de dormir uma só noite, para sempre.
Dá-me mil beijos, depois um cento,
e mais mil, depois outro cento,
depois outros mil, e mais cem.
Em seguida, quando juntarmos muitos milhares,
misturamo-los, para que não saibamos
ou nenhum malvado possa invejar-nos,
quando souber que tantos foram os beijos.

Termino com o original latino do poema.

V. ad Lesbiam

VIVAMUS mea Lesbia, atque amemus,

rumoresque senum seueriorum

omnes unius aestimemus assis!

soles occidere et redire possunt:

nobis cum semel occidit breuis lux,

nox est perpetua una dormienda.

da mi basia mille, deinde centum,

dein mille altera, dein secunda centum,

deinde usque altera mille, deinde centum.

dein, cum milia multa fecerimus,

conturbabimus illa, ne sciamus,

aut ne quis malus inuidere possit,

cum tantum sciat esse basiorum.

Klimt_Gustav-The_Kiss

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