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Uma das vantagens do sonho em relação à realidade é a possibilidade de com ele fugir à dor. Isto mesmo escreve Almeida Garrett (1799-1854) no poema Quando Eu Sonhava:


Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava — mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia …

 

 

Com efeito, enquanto sonhamos, dispensamos as dificuldades da realidade no processo de conseguir o que nos fará feliz.

 

 

Como refere o filósofo francês Émile-Auguste Chartier, conhecido pelo pseudónimo Alain (1868-1951), num dos seus Propos… sobretudo, o que me parece evidente, é que é impossível ser-se feliz se não se quer sê-lo;—.
A afirmação não é apenas retórica. Se olharmos dentro de nós sem subterfúgios ou desculpas e perguntarmos até onde estamos dispostos a ir para ser felizes, veremos quanto os obstáculos aparentemente intransponíveis nos tolhem o caminho.

 

Esta atitude do pensar explicitada por Alain é a menos comum de todas: a de que é preciso querer ser feliz para eventualmente o ser. E Almeida Garrett no poema Quando Eu Sonhava dá a visão mais comum: a imobilidade como solução para não correr riscos, trocando-os pelos sonhos que os permitem iludir.

 

 

 

Quando Eu Sonhava

 

Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar…
Para quê? — Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava — mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia …

 

in Folhas Caídas.

 

 

 

E retomo a exortação de Alain:
… é sempre difícil ser feliz; é um combate contra muitos acontecimentos e contra muitos homens; pode acontecer que se seja vencido; há sem qualquer dúvida acontecimentos inultrapassáveis e desgraças mais fortes que o estóico aprendiz; mas o dever mais claro é, talvez, nunca se admitir vencido antes de ter lutado com todas as forças. E sobretudo, o que me parece evidente, é que é impossível ser-se feliz se não se quer sê-lo; é preciso portanto querer a própria felicidade e construí-la.

 

 

Aqui ficam as afirmações e o conselho de um homem sábio, para quem a vida foi o desafio de a viver na sua diversidade e prazer, conhecendo a guerra por experiência própria, e os homens nas suas situações limite.
É um filósofo fora de moda para prejuízo de quem se dispensa de pensar pela própria cabeça e se limita a seguir pelos caminhos seguros do já conhecido.

 

 

Não sei de traduções em português de obras do filósofo. Nas colecções de bolso francesas encontram-se algumas compilações temáticas. A colecção dos seu Propos bem como outros textos relevantes encontram-se editados na colecção Pléiade da editora francesa Gallimard.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Matisse, A tristeza do rei.