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É de alucinação que fala o poema Vilancete de António Patricio (1878-1930).

Sentindo a presença viva da amada que partiu: … / Aparece irrealmente: / vem agora que está morta / sem bater à minha porta. /… , o poema conta-nos uma serena aceitação da morte de quem amamos:

Se o luar doira a vidraça,
ficamos juntos a ver
como a lua vem benzer
a cada coisa que passa.
Assim a noite esvoaça…
E por fim a amiga morta
sai sem nunca abrir a porta.

Nele não há vislumbre de desespero ou angústia, apenas uma espécie de saudade que o desgosto suavizou:

Como um perfume no escuro,
como na alma um perdão,
surge assim no coração
que por ela se fez puro.

Para os leitores que o recordem, lemos neste poema uma forma mitigada de viver com a lembrança da amada morta que Teixeira de Pascoaes exacerbou em Elegia do Amor.

Vilancete

Não mais bate à minha porta
aquela que nos sorria…
Coração: a amiga é morta.

Entra agora fluidamente
por onde quer, como quer;
com suas mãos de mulher
não bate: truz, truz! tremente.
Aparece irrealmente:
vem agora que está morta
sem bater à minha porta.

Como um perfume no escuro,
como na alma um perdão,
surge assim no coração
que por ela se fez puro.

Não há janela nem muro
que resista à amiga morta:
abre, sem abrir, a porta.

Vem sentar-se à minha mesa,
sonha ao canto da lareira,
só por ela a noite inteira
a candeia fica acesa.
Que eu já não tenho surpresa
quando ela vem, doce morta,
sem bater à minha porta.

Se o luar doira a vidraça,
ficamos juntos a ver
como a lua vem benzer
a cada coisa que passa.
Assim a noite esvoaça…
E por fim a amiga morta
sai sem nunca abrir a porta.

Este sentir a presença de fantasmas, diz-nos a medicina, é desvio mental que vale a pena vigiar. Há certamente luto por fazer em quem assim o sinta, e nós, leitores desprevenidos, precisamos ter presente que um poema é apenas ficção, não um relato emocional verídico com que possamos ter empatia.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973), A sombra de 1957.