Etiquetas

,

Numa recolha de poesias para celebrar a derrota da Martinhada a 17 de Novembro de 1820, em sessão da Universidade de Coimbra a 21 e 22 do mesmo mês, encontro um veemente e empolgante poema de Almeida Garrett (1799-1854), então jovem estudante e já fogoso liberal. 

Panfleto de crítica política e social, ditado pelos acontecimentos da época, o poema é, lido hoje, uma vigorosa defesa da liberdade e dos direitos dos desfavorecidos, assumindo que os intelectuais também fisicamente lutarão em sua defesa, se preciso for, como foi o caso na Revolução Liberal, com Garrett e Herculano entre eles:

E veja o mundo com terror, e espanto

Em cada filho de Minerva um Marte.

Tremam, caiam perversos aristocratas.

 

Mudemos aristocratas por autocratas, e Isto que um jovem estudante proclamava há 200 anos, é de novo a luta travada hoje pelos jovens em Hong-Kong e a que, à distância, assistimos nas televisões, aspirando eles ao mesmo que o nosso poeta com os restantes liberais à época alcançaram:

… Jugo de ferro, que pesava outrora / Sobre nossas cabeças, já desfeito /A pedaços caiu; / …

 

Voltando ao poema, a sessão recolhe testemunhos poéticos de alguns estudantes na altura, entre eles António Feliciano de Castilho e o irmão Augusto Frederico Castilho. Chegada a vez de Garrett, eis o que tem a dizer o moço de vinte anos:

 

Ergo tardia voz, mas ergo-a livre

Ante vós, ante os céus, ante o universo;

Se os céus, se o mundo minha voz ouvirem.

 

E esta voz ergue-se para increpar poderosos e submissos à arbitrariedade do poder absoluto. 

Depois de invocar como no passado a poesia cantou os feitos Portugueses, continua:

Não posso tanto, não me atrevo, ó sócios;

Mas tenho um coração, que é Lusitano;

Mas tenho um coração, que é livre, e é d’homem.

Livres, como ele, minha voz, meu brado

O que a alma sente vos espalhe n’alma,

E o grito da razão troveje ao mundo.

Livres! … Ah! livre um Português foi sempre.

Sim: que essa infame sórdida caterva,

Esse rebanho vil de vis escravos,

Que ao ceptro da ignorância incensam curvos,

Esses … esses … ó Lusa academia,

Do nome Português vergonha, opróbrio.

Portugueses não são, jamais o foram.

 

Para que não restem dúvidas, enumera a quem se refere: todos os beneficiários do antigo regime absolutista:

Esses pérfidos monstros, que enfatuados

Das sociais distinções usurpam glória,

Julgam virtude o mérito da sorte,

Do feudalismo atroz cruéis sectários,

Aristocratas bárbaros, insanos,

Que em si pretendem concentrar direitos,

Que ao povo inteiro, que à nação pertencem,

Réus do crime maior, que a terra há visto,

Réus do crime maior, que o céu punira,

Réus do crime maior, que urdiu o inferno;

Estes, Lusos serão, ou serão homens?

E o nome Português, o nome augusto,

Ante quem se prostrou de rojo o mundo 

O nome Português cabe em tais monstros?

 

Refere a seguir como o rei se encontra cego por esta corte que vive à sua volta e impedido de ver o sofrimento do povo:

… 

[O nome Português]

Cabe nos monstros, que afumando ao trono

O torpe incenso de venal lisonja,

Abjectos, vis, aduladores, pérfidos,

Olhos no interesse, ao paternal soberano

Lhe impedem ver as públicas desgraças,

Gemer nos males de seu povo aflito?

 

O poema continua apelando directamente ao rei:

… / Oh rei! oh pai! oh suspirado! oh caro! / Ah! rompe duma vez da intriga as malhas; / … para já no final se congratular com a conquista da liberdade:

Oh flor da pátria! oh mimo de seus filhos!

Oh Lusitana, ilustre juventude!

Jugo de ferro, que pesava outrora

Sobre nossas cabeças, já desfeito

A pedaços caiu; e a mão soberba,

Que os insofridos lábios nos tapava,

Ao golpe audaz jazeu da liberdade.

 

A capacidade empolgante da palavra poética na língua portuguesa vive neste poema de forma ímpar:

Pode, mais do que a espada, a voz, e a pena;

Sejamos sempre heróis, e sempre livres;

Sejamos, como sempre, Portugueses;

Vivamos livres, ou morramos homens.

 

 

São história a sociedade e o tempo de que no poema se fala. Mas esta língua que é nossa, continua viva para nos fazer entender o mundo em redor, e também aquele mundo que conheceu quem antes de nós a usou e burilou, e com ela nos deixou conta das lutas e experiências da vida que lhe coube viver.

 

 

Eis o poema integral:

 

 

Ao Corpo Académico

 

Ergo tardia voz, mas ergo-a livre

Ante vós, ante os céus, ante o universo;

Se os céus, se o mundo minha voz ouvirem.

 

Inda a braços co’a esquálida doença,

Mal posso o brado alçar débil, e frouxo,

Subir aos cumes de estremada glória,

Heróis cantar, que a impulsos formidáveis

De pujante valor, de ardido esforço

Ao chão baquearam bárbaros colossos

Do despotismo atroz, da tirania,

Que a máscara perversa enganadora

Da hipocrisia vil do fanatismo

Com destra mão impávidos rasgaram;

Tão nobres feitos, tão sublime arrojo. 

Assaz dos vates resoou na lira

De sobejo entre vós cisnes do Pindo

Com louro eterno no porvir c’roaram;

Nos peitos vossos de sobejo, há muito

Em caracteres se gravou de fogo.

 

Não posso tanto, não me atrevo, ó sócios;

Mas tenho um coração, que é Lusitano;

Mas tenho um coração, que é livre, e é d’homem.

Livres, como ele, minha voz, meu brado

O que a alma sente vos espalhe n’alma,

E o grito da razão troveje ao mundo.

Livres! … Ah! livre um Português foi sempre.

Sim: que essa infame sórdida caterva,

Esse rebanho vil de vis escravos,

Que ao ceptro da ignorância incensam curvos,

Esses … esses … ó Lusa academia,

Do nome Português vergonha, opróbrio.

Portugueses não são, jamais o foram.

Esses pérfidos monstros, que enfatuados

Das sociais distinções usurpam glória,

Julgam virtude o mérito da sorte,

Do feudalismo atroz cruéis sectários,

Aristocratas bárbaros, insanos,

Que em si pretendem concentrar direitos,

Que ao povo inteiro, que à nação pertencem,

Réus do crime maior, que a terra há visto,

Réus do crime maior, que o céu punira,

Réus do crime maior, que urdiu o inferno;

Estes, Lusos serão, ou serão homens?

E o nome Português, o nome augusto,

Ante quem se prostrou de rojo o mundo 

O nome Português cabe em tais monstros?

Cabe nos monstros, que afumando ao trono

O torpe incenso de venal lisonja,

Abjectos, vis, aduladores, pérfidos,

Olhos no interesse, ao paternal soberano

Lhe impedem ver as públicas desgraças,

Gemer nos males de seu povo aflito?

 

Oh rei! oh pai! oh suspirado! oh caro!

Ah! rompe duma vez da intriga as malhas;

Denso negrume, que te ofusca o ceptro;

Com o ceptro punidor dissipa, e vinga.

JOÃO! . . . Quanto este nome é caro aos Lusos!

JOÃO! . . . Deslembra alguém tão sacro nome?

E cumpre à prepotência a nós lembrá-lo!

E cumpre ao orgulho suscitá-lo aos peitos!

A nós, a Portugueses, quais nós somos,

A filhos de Minerva!… A ofensa é crua,

Barbara a afronta, pérfido o conselho,

Indigna… Ah! perdoemos, sócios caros;

Generoso perdão se outorgue à infâmia:

Das dádivas do céu disponham Lusos.

 

Oh flor da pátria! oh mimo de seus filhos!

Oh Lusitana, ilustre juventude!

Jugo de ferro, que pesava outrora

Sobre nossas cabeças, já desfeito

A pedaços caiu; e a mão soberba,

Que os insofridos lábios nos tapava,

Ao golpe audaz jazeu da liberdade.

Anos de escravidão vingue um só dia;

Séculos ganhem fugitivas horas:

Em livres brados à virtude à gloria

O frouxo peito aos cidadãos movamos.

 

Pode, mais do que a espada, a voz, e a pena;

E, se a espada cumprir, cinja-se a espada;

E veja o mundo com terror, e espanto

Em cada filho de Minerva um Marte.

Tremam, caiam perversos aristocratas.

Sejamos sempre heróis, e sempre livres;

Sejamos, como sempre, Portugueses;

Vivamos livres, ou morramos homens.

 

João Baptista da Silva Leitão d’Almeida Garrett

 

in Collecção das Poesias recitadas na Salla dos Actos Grandes da Universidade de Coimbra nas noites do dia 21 e 22 de Novembro em pública demonstração de regosijo pelo feliz resultado do dia 17, 1820, COIMBRA. NA REAL IMPRENSA DA UNIVERSIDADE, 1821.

Modernizei a ortografia do poema.

Abre o artigo a imagem de uma foto de Anthony Kwan mostrando uma das recentes manifestações em Hong-Kong.