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A completude do humano faz-se com o físico e com o espiritual. Depois de desafiar os leitores para a experiência do sexo, venho hoje com a consolação da filosofia, tal como no-la deixou Boécio no livro do mesmo nome.
Texto ímpar na sua intemporalidade, nele seguimos as dúvidas do autor, que tantas vezes identificamos com as nossas, sobre as vicissitudes e significado da existência, e a resposta filosófica às mesmas.
Alternando prosa e verso (na obra denominado Metro), acompanhamos os azares da fortuna e a resposta que ao desespero a filosofia dá, encontrando nela cada um dos leitores, a consolação por que anseia e às vezes desespera.
Neste caminho de interrogação chegamos inevitavelmente ao Criador invocado no Metro 9 do Livro III:
Ó Criador do céu e da terra,
que com eterna razão governas o mundo,
Sublime poema agora em tradução portuguesa, nele encontramos uma concepção do Deus Criador:
Tu, na verdade, és a serenidade,
Tu o tranquilo repouso dos piedosos.
ao qual o homem aspira:
Concede-me, ó Pai, ascender à augusta morada do bem,
concede-me contemplar do bem a fonte,
concede-me que fixe em ti, encontrada a luz,
a clara visão do espírito.
Deixo-vos com o poema na sua totalidade e as notas do tradutor.
Ó Criador do céu e da terra,
que com eterna razão governas o mundo,
que, a partir da eternidade, fazes avançar o tempo
e que, permanecendo imóvel, a tudo dás movimento.
Tu, que causas exteriores não impeliram a criar
a obra da instável matéria,
mas foi antes a beleza intrinseca e imaculada do sumo bem
que Te levou a criar tudo segundo o modelo celeste,
Tu, sendo belissimo Tu próprio, governas o belo mundo
a partir da tua mente, formando-o à tua imagem,
ordenando que partes perfeitas
dêem origem a um todo perfeito!
Tu unes os elementos através de proporções matemáticas,
de modo que os frios se liguem às chamas,
as coisas áridas às líquidas,
de modo que o fogo, mais subtil, não se evole
ou o peso da água empurre para baixo
as terras submersas.
Tu, unindo a alma da tripla natureza(1),
que tudo liga e move,
liberta-la disseminando-a por membros harmoniosos,
a qual quando, separada,
tiver juntado o movimento em dois orbes (2),
a si mesma regressa, envolve a mente profunda
e transforma o céu à sua imagem e semelhança.
Tu crias as almas através de processos semelhantes
e as formas de vida inferiores,
ligando as mais altas a leves carros,
semeia-las pelos céus e terras,
e quando estas se voltam para Ti,
com benévola lei fazes que a Ti regressem,
trazidas pelo fogo.
Concede-me, ó Pai, ascender à augusta morada do bem,
concede-me contemplar do bem a fonte,
concede-me que fixe em ti, encontrada a luz,
a clara visão do espírito.
Dissipa as névoas e os entraves da massa terrenal
e resplandece com o Teu esplendor.
Tu, na verdade, és a serenidade,
Tu o tranquilo repouso dos piedosos.
Contemplar-te é o fim e o princípio,
ó guia, ó chefe, caminho e destino.
(1)Trata-se aqui da Alma do Mundo, anima mundi. A natureza é formada por mens, anima e materia, sendo a anima o elemento de ligação, distribuído por todas as coisas, a que dá movimento e união. (2) A alma divide-se em duas partes, cujos movimentos tomam a forma de dois círculos, que acabam por voltar à sua origem.Noticia bio-biliográfica
Anicio Torcato Severino Boécio (480-524 d.C.) viveu os anos finais do Império Romano (historicamente extinto em 476 d.C. com a deposição de Rómulo Augústulo pelas legiões da Gália). Pertenceu à mais alta aristocracia romana, tendo da família dos Anícios, cristã desde o século IV, saído dois papas e um cônsul.
Homem rico e poderoso, o senador Boécio encontrava-se preso em 524, acusado de traição, e com a consciência de que esta acusação o poderia levar à morte. Despojado de tudo, com ele ficou apenas a vasta cultura, fruto da melhor educação possível à época. No estado de espírito que esta história de vida induz, naquela espécie de ante-câmara da morte, escreveu este diálogo entre o homem do mundo e uma figura feminina, a Filosofia, fazendo passar nesta conversa, as interrogações mais fundas de cada homem que se pensa e pensa o mundo.
O livro, Consolação da Filosofia, está finalmente disponível numa deslumbrante tradução moderna de Luis M. G. Cerqueira, que transforma a obra, para quem a lê, em livro de cabeceira.
A edição é da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2011.
A imagem que acompanha o artigo mostra uma pintura de Mark Rothko (1903-1970).