Etiquetas
Eis Bocage
Magro, de olhos azuis, carão moreno.
Bem servido de pés, meão de altura
Triste de facha, o mesmo de figura.
Nariz alto no meio e não pequeno,
Incapaz de assistir num só terreno;
Mais propenso ao furor do que à terura;
Bebendo em niveas mãos por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage, em quem luz algum talento.
Sairam dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
O homem é hoje talvez mais conhecido que o poeta. Dele apenas proliferam as edições da Poesia Erótica Burlesca e Satírica, permanecendo o restante da obra no quase esquecimento. Uma nova edição da obra completa encontra-se em curso de publicação, da responsabilidade de Daniel Pires, nas Edições Caixotim.
Embora as cartas de Olinda e Alzira sejam do melhor da poesia portuguesa, sobretudo a Epístola VI, há mais poesia de Bocage para além da erótica e satírica, e não é de somenos. O conjunto de sonetos e epistolas escritos no cárcere são de uma pungência difícil de igual, qual seja este:
Aqui onde arquejando estou curvado
À lei, pesada lei, que me agrilhôa,
De lugubres ideias se povoa
Meu triste pensamento horrorizado;
E dando conta do peso do isolamento em que se encontra continua, terminando com:
Só me cercam fantasmas da tristeza.
Que silencio! Que horror! Que escuridade!
Parece muda, ou morta a natureza.
Bocage, como outros poetas maiores de setecentos e oitocentos, levados pela luta entre a razão e a crença, confrontaram-se com Deus na sua poesia. Estou a lembrar-me de Guerra Junqueiro e Gomes Leal entre os maiores. Chegados ao fim da vida protagonizaram estrondosos arrependimentos e Bocage não foi excepção acabando, quando sentiu próximo o fim, a gritar:
Deus! Ó Deus!…quando a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.
Na consciência da finitude exclamou a crença na eternidade:
Já Bocage não sou!… À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quam vã figura
Em prosa ou verso fez meu louco intento.
Musa!… tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura.
Eu me arrependo! A língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui… A santidade
Manchei!… Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!
Felizmente podemos crer na eternidade e conviver com os versos de Bocage. E atrever-me-ia a dizer que foi mais que Aretino, de quem a humanidade conserva apenas os 26 sonetos luxuriosos, deixando no quase esquecimento o resto que também criou.
Conta a tradição sobre este último soneto Já Bocage não sou!… À cova escura, referida por Rebelo da Silva no estudo biográfico e literário que acompanha a edição das Poesias de Bocage preparada por Inocêncio e editada em 1853, que o poeta“dictou ainda o ultimo soneto, que o morgado de Assentis colheu dos seus lábios trémulos, e escreveu todo de seu punho. O derradeiro suspiro foi portanto um grito de arrependimento”.