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De Bocage, contemporâneo de Goethe de quem deixei antes o livro do amor, chegam hoje alguns sonetos escritos na graça peculiar da poesia arcádica, dando conta dos transtornos da paixão.
Sonetos onde a música do verso e a exemplaridade da construção estrófica se sobrepõem à estranheza para os nosso ouvidos do século XXI, desta particular forma de dizer.
De suspirar em vão já fatigado, o poeta sonha que a morte o visita. Mas não será aí o fim do poeta.
Ao ver a morte erguer Curva foice no punho descarnado, enquanto lhe dizia:
“Eu venho terminar tua agonia: / Morre, não penes mais, ó desgraçado.”
surge o deus Amor, e imperioso ordena à Morte:
“Emprega noutro objecto os teus rigores,
Que esta vida infeliz está guardada
Para vitima só de meus furores.”
Para aqui chegarmos, vamos primeiro acompanhar o poeta na descoberta do amor,
Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!
e no desejo da sua consumação:
Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo.
(e já noutro dia, com o poema de Parny, vimos o que nesta poesia do século XVIII significa Destas copadas árvores o abrigo.)
Enquanto espera, consome-se nas ânsias loucas da paixão:
Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido,
De ti só trago cheia, ó Jónia, a mente:
Do mais e de mim mesmo ando esquecido.
Leremos do sofrimento sem esperança a que o amor conduz, fazendo o sofredor apenas desejar a morte:
Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio, com que está minha alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.
Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.
para que no final, salvo dela pelo deus Amor, possamos participar da ansiedade com que aguarda a consumação sexual da sua paixão.
Grato silêncio, trémulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz: longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.
Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores
Hei-de, enfim, possuir; porém segredo.
Durante a espera pede segredo aos ventos, Zéfiros, para que não levem a Júpiter o eco dos frouxos ais, brandos queixumes ouvidos durante o sexo, pois Júpiter, com a sua reputação de come tudo, irá querer reservar para si o banquete do amor de Nise:
Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Nao leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o Pai dos numes:
Cale-se o caso a Jove omnipotente,
Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.
Nos sonetos temos Marília, Nise, Jónia, nomes convencionais para uma mesma ou varias paixões. É irrelevante. São poesias desligadas de destinatário, onde apenas a forma de dar corpo ao sentimento conta. E esse, no século XVIII como agora, é o mesmo. Tal como é a mesma, a forma de o viver. Apenas como o exprimimos mudou.
Vamos então aos poemas que já é tempo.
I
Ó tranças de que Amor prisões me tece,
Ó mãos de neve, que regeis meu Fado!
Ó tesouro! Ó mistério! Ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!
Ó ledos olhos, cuja luz parece
Ténue raio do Sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!
Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!
Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois? Sois de Vénus? É mentira:
Sois de Marília, sois dos meus Amores.
II
Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus húmidos vapores,
A fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste.
Varrendo os ares o subtil Nordeste,
Os torna azuis: as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste.
Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo.
Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!
III
Enquanto o Sábio arreiga o pensamento
Nos fenómenos teus, ó Natureza,
Ou solta árduo problema, ou sobre a mesa
Volve o subtil geométrico instrumento;
Enquanto alçando a mais o entendimento,
Estuda os vastos céus, e com certeza
Reconhece dos astros a grandeza,
A distância, o lugar, e o movimento;
Enquanto o Sábio, enfim, mas sabiamente
Se remonta nas asas do sentido
À corte do Senhor omnipotente;
Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido,
De ti só trago cheia, ó Jónia, a mente:
Do mais e de mim mesmo ando esquecido.
IV
Já sobre o coche de ébano estrelado
Deu meio giro a Noite escura e feia:
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!
Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado.
Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio, com que está minha alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.
Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.
V
De suspirar em vão já fatigado,
Dando tréguas a meus males, eu dormia;
Eis que junto de mim sonhei que via
Da Morte o gesto lívido e mirrado.
Curva foice no punho descarnado
Sustentava a cruel e me dizia:
“Eu venho terminar tua agonia:
Morre, não penes mais, ó desgraçado.”
Quis ferir-me, e de Amor foi atalhada,
Que armado de cruentos passadores
Aparece, e lhe diz com voz irada:
“Emprega noutro objecto os teus rigores,
Que esta vida infeliz está guardada
Para vitima só de meus furores.”
VI
Grato silêncio, trémulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz: longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.
Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores
Hei-de, enfim, possuir; porém segredo.
Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Nao leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o Pai dos numes:
Cale-se o caso a Jove omnipotente,
Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.