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Regresso à ligeireza e despreocupação, com o mundo da poesia neo-clássica e o poema A Noite, cançoneta anacreontica, escrito por Bocage (1765-1805).
Trata-se de um poema inserido na tradição anacreontica, embora de muito maior extensão que o habitual. Esta tradição respeita a uma poesia codificada, com assunto e forma perfeitamente delineados pela convenção, e inspirada na colecção de poesias anacreonticas gregas de autores desconhecidos, provavelmente do periodo helenístico, cantando a despreocupação e uma atitude edonista perante a vida, privilegiando os prazeres do amor e da boa mesa. A colecção foi por longo tempo atribuída a Anacreonte, daí o nome genérico do género. Em A Noite, Bocage foge a este quadro temático, dando antes conta de uma traição de amor e do seu efeito devastador, mantendo no entanto, o ambiente da natureza como cenário, e a população mitológica como protagonista.
Com um desenvolvimento e vocabulário em desuso, comecemos por conhecer a história relatada no poema para contornar eventuais dificuldades de leitura.
Na natureza, passava da noite a metade e a tranquilidade instalava-se. O lobo dormia, a rã rouquejava, esvoaçavam insectos e o mocho piava. O vento suave (favónio) amainara, era a hora de saciar o amor. O sussurro do rio desfazia a tristeza da noite sombria.
Um namorado trocado, sózinho, aos penedos clamava dos seus desgostos. Alagado em suores frios e da vida desiludido, alto pedia o fim ao destino: De que me aproveita / Viver desta sorte? / A vida é aos tristes / Mais agra*, que a morte.
E vem agora a história do porquê de tão grande desgosto: Feliza, depois de promessas de fidelidade, trocou o poeta (Elmano) por um Vaqueiro que agora a acaricia, a beija, e ela retribui, e mais: Cedendo aos assaltos / De impuras carícias, / Também lhe franqueias / Vedadas delícias!
Percebemos com facilidade o que acontece e o poeta com as Vedadas delícias eufemisticamente refere.
No auge do desespero pede o enamorado aos céus que o vinguem, e desmaia. Os ecos destes clamores chegaram aos deuses e estes, condoídos, levaram-nos à morada do deus Amor. Encontraram-no que dormia risonho, no regresso de uma aventura em que causara a humanos, sofrimentos de amor. Afastados aguardavam e vigiavam: desdéns, esperanças, sorrisos, prantos e mordazes suspeitas (afinal a panóplia de sentimentos contraditórios que amor inspira). Esperam que o deus Cupido com os clamores de Elmano acorde, mas o deus não desperta. É então que esses ecos dos clamores do desdenhado amante:
… pasmados
O corpo lhe abalam,
E apenas o acordam,
D’esta arte lhe falam:
— É crível, Menino,
Que durmas em paz
Ao som de um gemido,
Que penhas desfaz?
— Deixai-me, importunos,
(Lhes brada o Travesso)
Que ao som de suspiros
É que eu adormeço.
Temos, pois, como lição nesta história de desespero de amor (q.b.) que resumi, como Amor só sossega quando faz suspirar, e Bocage conta, com o encanto da poesia anacreontica, usando a elegância e mestria versificatória que são suas.
Segue o poema em ortografia modernizada.
A Noite
A deusa, que esmalta
De estrelas o céu,
Ja tinha dobrado
Metade do véu;
O fero Inimigo
Da ovelha medrosa
Jazia ululando
Na serra fragosa:
A rã rouquejava
No túrbido lago,
Carpia entre as moitas
O mocho aziago:
De alados insectos
Nos ares vagava
Caterva lustrosa,
Que as sombras doirava:
Os lassos favónios
Dormiam nas flores,
Enquanto velavam
Famintos amores:
Susurro aprazível,
Que o Tejo fazia,
Coarctava a tristeza
Da noite sombria.
Então, solitário,
Seu mal, seus segredos
O lânguido Elmano
Contava aos penedos.
De gélidas gotas
O rosto orvalhado,
De zelos mordido,
Da vida enjoado,
Destinos! (clamava)
Que assim retardais
O termo infalível,
Que imploram meus ais.
De que me aproveita
Viver desta sorte?
A vida é aos tristes
Mais agra(*), que a morte.
Feliza deixou-me,
Fugiu-me a perjura,
Depois de votar-me
Perene ternura:
Fugiu-me, deixou me
Curtindo a ansiedade,
Que geram, que nutrem
Ciúme, e saudade:
Entre estes dois males
Meu peito se sente,
Qual entre dois lobos
Cordeiro inocente.
Ah céus! Tu, minha alma
Tu, idolo meu,
Manchando teus olhos
No torpe Silêu! *
A mão, que no peito
Me abriu funda chaga,
Nojoso vaqueiro
Te beija, te afaga!
C’os bracos macios,
Apoio das graças,
O colo rugoso
Lhe amimas, lhe enlaças
Consentes-lhe, ingrata,
Que libe, que empeste
Nos teus doces lábios
O néctar celeste!
Cedendo aos assaltos
De impuras carícias,
Também lhe franqueias
Vedadas delícias!
Ah! Vinguem-me, estorvem
Seus júbilos ternos
Com raios, com fúrias
Os céus, e os infernos.
Aqui os sentidos
Nas asas de um ai
Lhe escapam, lhe fogem,
E o mísero cai.
Nas grutas os ecos
Ao grito espertaram,
E, dele doídos,
A Amor, o levaram.
Voando ao fragrante
Vergel de Cythera,
Por ti frequentado,
Louçã Primavera,
Encontram Cupido,
Que há pouco voltara
De empresa brilhante,
Que ufano acabara.
Folgavam do numen
As carne mimosas
Em mole alcatifa
De goivos, e rosas;
Dormia, e na ideia
Morfeo Ihe pintava
Sanguíneos triunfos,
Que o mundo chorava;
Não longe, em silêncio,
Pousavam encantos,
Desdens, esperanças,
Sorrisos, e prantos;
Mordazes suspeitas,
Que o deus vigiavam,
Raivando, em si mesmas:
Os dentes cevavam;
Do tronco de um mirto
Pendia o luzente
Carcaz, salpicado
De sangue inda quente;
Nas pontas ervadas
Dos áureos arpões
Ainda arquejavam
Fiéis corações.
A gárrula turma
Rodeia cupido,
Repete, anelante,
De Elmano o gemido.
Eis fremem os ventos,
Eis aves alerta,
Convulsos os montes,
E Amor não desperta.
Os Ecos, pasmados
O corpo lhe abalam,
E apenas o acordam,
D’esta arte lhe falam:
— É crível, Menino,
Que durmas em paz
Ao som de um gemido,
Que penhas desfaz?
— Deixai-me, importunos,
(Lhes brada o Travesso)
Que ao som de suspiros
É que eu adormeço.
*
agra — amarga
Silêu — por facínora (Cf. mitologia os trabalhos de Heracles exigidos por Onfala).
Porque a vida são dois dias, e traições de amor que as leve o vento, passemos a algumas Cançonetas Báquicas para a Mesa escritas também por Bocage. Fazem elas a associação entre o amor e o vinho:
…
Amor, oh Baco,
Tem por costume
Juntar seu lume
Com teu ardor.
…
Inocentes brincadeiras poéticas, agora sim no espírito padrão da poesia anacreontica amplamente cultivada pelos poetas neo-clássicos do século XVIII português, nestes poemas elogiam-se os prazeres de beber vinho, e de caminho elucidam-nos da vantagem da sua associação ao amor:
…
Ambos se adorem
Com igualdade,
Tenha a vontade
Mais de um Senhor.
Baco triunfe,
Triunfe Amor.
Este Ambos se adorem / Com igualdade, / Tenha a vontade / Mais de um Senhor. com que a terceira canção acaba, é o resumo da postura edonista que esta poesia advoga como essencial numa filosofia de vida.
Eis as canções:
I
Amor é fonte
De riso, e graça,
Porém não passa
De um só sabor:
O doce Baco
Tempera Amor.
II
Baco entre o coro
Das lindas Graças
Exaure as taças
De almo elixir:
Dum deus o exemplo
Cumpre seguir.
III
Descuida-se Jove
Na olímpica mesa
Da suma grandeza,
Do eterno poder;
Consente um sorriso
Nos lábios, que molha,
E humano se antolha
No gesto, no ser;
A monotonia
Dos bens, em que impera,
O néctar lhe altera,
Lhe faz esquecer:
O néctar, que adoça
Mortais azedumes,
Até entre os numes
Matiza o prazer.
Se Jupiter. bebe,
Não hei-de eu beber?
De Baco opulento
Compõe-se o tesoiro,
De pérolas, de oiro,
Topázio, rubi.
Do néctar sentindo
Nas fauces o travo,
Misérrimo escravo
Desdenha o Sufi.
Lustrosas quimeras
Lhe vagam na mente,
Do mundo é contente,
Contente de si.
Amigos, libemos
O pico sagrado,
Tão mal condenado
Na seita de Ali.
Teimosos cuidados,
Caterva importuna,
Visões da fortuna,
Deixai-nos, fugi.
O nosso universo
Não passa daqui.
Em torno a Baco
Sussurra, adeja,
Ri-se, graceja,
Cintila Amor.
Ao deus Idálio*
Baco é preciso,
Dobra-lhe o riso,
Lhe acende a cor.
Amor, oh Baco,
Tem por costume
Juntar seu lume
Com teu ardor.
Ambos se adorem
Com igualdade,
Tenha a vontade
Mais de um Senhor.
Baco triunfe,
Triunfe Amor.
* deus Idálio — deus do Amor. Idálio, cidade de Chipre onde se praticou o culto a Afrodite, deusa do amor, e mãe de Eros.
Poemas transcrito de Rimas de Manoel Maria Barbosa du Bocage, Tomo I, segunda edição corrigida e aumentada, na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1800.
Modernizei a ortografia.
Carlos Mendonça Lopes
Abre o artigo a imagem do pormenor de uma pintura atribuída a Charles André van Loo (1705-1765), Mercúrio e Argus.