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Os sonhos, porta de entrada da esperança, umas vezes realizam-se, outras ficam pelo caminho nos acidentes de percurso da vida vivida. Não que os sonhos do pensamento sempre se esboroem virando a esperança em tristeza, ou como poeticamente escreve D. Francisco de Sá e Meneses (1515-1584), 1.º Conde de Matosinhos(*), no poema que a seguir transcrevo: pago sempre em tristeza / os sonhos do pensamento. Esta desilusão permanente é talvez uma imagem de abismo decorrente de desilusões sucessivas, a ponto de o poeta desabafar:
…
Que até de ter esperança
Tenho a esperança perdida.
…
Embora suponhamos poder ter mão no destino, em verdade só a temos no que da nossa vontade depende, como bem lembra Epicteto (séc. I-II) em Encheiridion (Manual). O que nos é alheio atinge-nos sem fuga. E se esse acontecer, a que chamamos pouca sorte, persiste, então talvez sintamos como o poeta que ao terminar o poema se lamenta:
…
E eu, por não mudar a sorte,
Nem morro nem tenho vida.
Que nem todos tenhamos tamanha desilusão com o viver, desejo.
Poema
Mote
Já não posso ser contente:
Tenho a esperança perdida!
Ando perdido entre a gente;
Nem morro, nem tenho vida.
Glosa
A tudo quanto desejo
Acho atalhadas as vias;
Em tentos e fantasias
Mui mau caminho me vejo.
Se do passado e presente
O porvir se pode crer,
Já não há que pretender:
Já não posso ser contente.
Que de tudo quanto quero
Chego a tara triste estremo
Que vejo tudo o que temo
E nem sombra do que espero,
Desengano-me da vida
E fiz nela tal mudança
Que até de ter esperança
Tenho a esperança perdida.
Cuidei um tempo que havia
Na fortuna o que buscava,
E posto que o não dava,
O mesmo tempo o daria.
Achei tudo diferente,
Fiquei desencaminhado,
E como em despovoado,
Ando perdido entre a gente.
De que farei fundamento
Pois em nada acho firmeza
E pago sempre em tristeza
Os sonhos do pensamento?
Abrande esta dor crescida
Vivendo em pena de morte,
E eu, por não mudar a sorte,
Nem morro nem tenho vida.
Fonte do poema
As cem melhores poesias (líricas) da língua portuguesa escolhidas por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, editado simultaneamente em Lisboa, Rio de Janeiro, Berlim, Bruxelas, Lausanne, Londres, 1910.
Actualizei a ortografia.
(*) Não confundir com o sobrinho de nome homónimo e autor do poema épico Malaca conquistada e poemas diversos.
Com esta publicação concluem-se dez anos de blog e quase mil artigos publicados.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Joan Miró (1893-1983), A Esperança.
Possa o contemplá-la ser um estímulo para manter a esperança vida fora.