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Um peito em fogo ardente incendiado
Qual jamais existiu, por ti se inflama,
…
Que tal como declaração de amor?
Há uma geração de vozes poéticas nascidas em finais do século XVIII e formadas no que talvez se possa chamar uma escola bocagiana, cuja obra ao ser publicada em pleno romantismo ou mesmo já em florescimento do pós-romantismo associado a O Trovador, por fora de época, foram e permanecem completamente ignoradas. Escapou Pato Moniz (1781-1826) graças ao seu poema herói-cómico Agostinheida onde zurzia José Agostinho de Macedo (1761-1831). Mas da poesia original de um José Maria da Costa e Silva (1788-1854), ou mesmo de um Francisco Evaristo Leoni (1804-1874), nomes que ainda ressoam graças a estudos literários notáveis, ou ainda João António dos Santos (1791-1837) de quem hoje transcrevo um poema, nada se conhece.
Da poesia de João António dos Santos escreve Inocêncio no seu Dicionário Bibliográfico: “… os seus versos são fluentes, e bem medidos, e a sua metrificação sempre cadente, e harmoniosa; posto que às vezes retumbante em demasia. …”. Não será o retumbante que encontramos no soneto que a seguir transcrevo, mas sim a metrificação harmoniosa.
Trata o soneto de uma apaixonada declaração de amor e fidelidade tanto na ventura como na adversidade. Já estamos longe da volubilidade amorosa da poesia neo-clássica exemplificada nos sonetos gémeos de Alvarenga Peixoto e Tomás António Gonzaga que proximamente trarei ao blog. Neste soneto é a continuidade da poesia amorosa maneirista devedora de Camões e seus herdeiros que encontramos.
Soneto
Um peito em fogo ardente incendiado
Qual jamais existiu, por ti se inflama,
Um peito, que no mundo a ti só ama
Em ti deve encontrar benigno agrado.
Se contra mim se armar adverso fado
Tentando amortecer dest’alma a chama,
Debalde lida, que a paixão me clama
Amar-te, ou venturoso, ou desgraçado.
Tudo caduca: meu amor não passa…
Com o sangue tanto afecto rubricara…
A tal paixão propicia amor te faça!
Se num trono da terra eu dominara,
E tivesses nascido em sorte escassa,
O trono, por gozar-te, abandonara.
in José António dos Santos, Ensaios Poéticos, Imprensa de Cândido António da Silva Carvalho, Lisboa, 1836.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Guido Reni (1575-1642), Baco e Ariadne (1620), da colecção do LACMA (Los Angeles County Museum of Art). A pintura actualmente está fora de exposição.
Levados pelo poema a ler a imagem, longe do seu propósito original, poderíamos pensar que perante a indiferença, se não mesmo alheamento da dama, face a tão ardente declaração, o rapaz está verdadeiramente estupefacto, a ponto de ficar completamente desmotivado no seu ardor.