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Prova — poema de Ángel González

17 Quarta-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Espanhola

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Angél Gonzalez

Dúplice e irónico, o poema Prova de Ángel González (1925-2008), traz uma prova da existência de Deus na perfeição do funcionamento físico da sua criatura, O Homem:

…
Isto é alguma coisa
repito
se se tem
em conta
essa admirável prova da existência de Deus
constituída
pelo perfeito funcionamento dos meus centros nervosos
que transmitem as ordens que o meu cérebro emite
às margens longínquas das minhas extremidades.
…

 

Depois, a evidência de que esse perfeito funcionamento tanto serve para fazer o bem como para fazer o mal,
…
Mão coça-me a cabeça!
Mão, aproxima
essa cadeira. Desaperta
o soutien a essa miúda
— e tu, a outra, não fiques quieta.
Apanha
todo o dinheiro, mão:
incendeia, mata.
…

 

O que lhe permite concluir em dedução à maneira da matemática, com esta fórmula lapidar:
…
Portanto,
prova-se uma vez mais,
como eu dizia,
a ordem natural e pré-existente,
a formosura harmónica das coisas.

 

De novo, e uma vez mais, sem respostas definitivas, continuamos a busca inacabada da razão porque existimos.

 

 

Prova

De todos os modos, tenho ainda
este papel,
a caneta,
e a mão direita que a aperta,
e o braço que liga ao meu corpo
para que não fique
— tão distante e longínqua —
como um objeto solto e estranho
— cinco dedos movendo-se,
marchando
pelo solo,
tal como um sujo
animal acossado pela vassoura…

Isto é alguma coisa
repito
se se tem
em conta
essa admirável prova da existência de Deus
constituída
pelo perfeito funcionamento dos meus centros nervosos
que transmitem as ordens que o meu cérebro emite
às margens longínquas das minhas extremidades.

Penso:
           a tarde morre,
e minha mão escreve:
                                     a tarde
morre.
           Ergo Deus existe.

Como é fácil agora,
integrar-se num mundo ordenado e perfeito,
quando se dispõe de uma mão tão perfeita e valiosa,
tão matéria de prova,
tão corpo de delito.

Mão coça-me a cabeça!
Mão, aproxima
essa cadeira. Desaperta
o soutien a essa miúda
— e tu, a outra, não fiques quieta.
Apanha
todo o dinheiro, mão:
incendeia, mata.

Portanto,
prova-se uma vez mais,
como eu dizia,
a ordem natural e pré-existente,
a formosura harmónica das coisas.

Tradução de Egito Gonçalves.

O poema original, Prueba, foi publicado no livro Grado Elemental, 1962.
Transcrevo a tradução de Poesia Espanhola do Após-Guerra, Portugália Editora, s/d.

 

 

Abre o artigo a imagem ligeiramente enquadrada de uma pintura de Georg Baselitz (1938), A mão de Deus (Remix) de 2006.

 

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Entreacto – poema Ángel González

24 Sexta-feira Jul 2015

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Angél Gonzalez, Piero di Cosimo

Piero di Cosimo - Perseu ataca o monstro - detalhe de Andrómeda libertada por PerseuUm destes dias veio ao meu encontro o poema de Ángel González (1925-2008) que hoje transcrevo, Entreacto, em tradução de Egito Gonçalves (1920-2001).

A campanha eleitoral anima-nos o dia-a-dia televisivo. Nas pausas que o trabalho permite tenho olhado a televisão à hora das notícias.  Perante a conversa e os personagens que fazendo pela vida tentam convencer-nos do que é bom para cada um de nós com:

 

…

Aqueles

ineficazes e tortuosos diálogos

com referências a ontem, a um tempo

ido,

completam, no entanto,

o panorama esfarrapado que ante nós

se depara, e talvez

então expliquem muitas coisas, sejam

a chave que no final justifique

tudo.

…

 

(fim de citação), invade-me uma melancolia inaudita, afinal resultado dos tantos anos em que os personagens repetem a peça.

 

Como luva que calça a atmosfera política do Portugal de hoje, é do que talvez alguns também sintam que o poema fala.

Após o fragmento anterior, eis o poema na totalidade da tradução e no original.

 

Entreacto

 

Não acaba aqui a história.

Isto é só

uma pequena pausa para que descansemos.

A tensão é tão grande,

a emoção que a trama desprende é tão

intensa,

que todos,

bailarinos e actores, acrobatas

e o distinto público,

agradecemos

a trégua convencional do entreacto,

e comprovamos

alegremente que tudo era mentira,

enquanto os músicos afinam os violinos.

Até agora, vimos

várias cenas rápidas que preludiavam a morte,

conhecemos o rosto de certos personagens

e sabemos

algo que inclusivamente muitos deles ignoram:

o móbil

da traição e o nome

de quem a praticou.

Não ocorreu ainda nada de definitivo

mas

o desespero e os intérpretes

tentam evitar o rigor do destino

pondo demasiado calor nos seus exuberantes

ademanes, demasiado colorido nos seus sorrisos

falsos,

com que — é evidente — dissimulam

a sua covardia, o terror

que dirige

os seus movimentos no cenário.

Aqueles

ineficazes e tortuosos diálogos

com referências a ontem, a um tempo

ido,

completam, no entanto,

o panorama esfarrapado que ante nós

se depara, e talvez

então expliquem muitas coisas, sejam

a chave que no final justifique

tudo.

Não esqueçamos também

as palavras de amor junto ao tanque

o gesto demudado, a violência

com que alguém disse:

                                     “não”

                                               olhando o céu,

e a surpresa que produz

o torvo jardineiro quando anuncia:

“chove, senhores,

chove

ainda”.

Mas talvez seja cedo para conjecturas:

deixemos

que a tramóia se prepare,

que os que hão-de morrer recuperem o alento,

e pensemos,

quando o drama prosseguir e a dor

fingida

se torne verdadeira em nossos corações,

que nada se pode fazer, que está próximo

o fim que tememos de antemão,

que a aventura acabará, sem dúvida,

como deve acabar, como está escrito,

como é inevitável que suceda.

 

 

Original em castelhano
Entreacto

 

No acaba aquí la historia.

Esto es solo

una pequeña pausa para que descansemos.

La tensión es tan grande,

la tensión que desprende la trama es tan

intensa,

que todos,

bailarines y actores, acróbatas

y distinguido público,

agradecemos

la convencional tregua del entreacto,

y comprobamos

alegremente que todo era mentira,

mientras los músicos afinan sus violines.

Hasta ahora hemos visto

várias escenas rápidas que preludiaban muerte,

conocemos el rostro de ciertos personajes

y sabemos

algo que incluso muchos de ellos ignoran:

el móvil

de la traición y el nombre

de quién la hizo.

Nada definitivo ocurrió todavía

pero

la desesperación está nítidamente

dibujada, y los intérpretes

intentan evitar el rigor del destino

poniendo

demasiado calor en sus exuberantes

ademanes, demasiado carmín en sus sonrisas

falsas,

con lo que -es vidente- disimulan

su cobardía, el terror

que dirige

sus movimientos en el escenario.

Aquellos

ineficaces y tortuosos diálogos

refiriéndose a ayer, a un tiempo

ido,

completan. sin embargo,

el panorama roto que tenemos

ante nosotros, y acaso

expliquen luego muchas cosas, sean

la clave que al final lo justifique

todo.

No olvidemos tampoco

las palabras de amor junto al estanque,

el gesto demudado, la violencia

con que alguien dijo:

«no»,

mirando al cielo,

y la sorpresa que produce

el torvo jardinero cuando anuncia:

«Llueve, señores,

llueve

todavía.»

Pero tal vez sea pronto para hacer conjeturas:

dejemos

que la tramoya se prepare,

que los que han de morir recuperen su aliento,

y pensemos,

cuando el drama prosiga y el dolor

fingido

se vuelva verdadero en nuestros corazones,

que nada puede hacerse, que está próximo

el final que tenemos de antemano,

que la aventura acabará, sin duda,

como debe acabar, como está escrito,

como es inevitable que suceda.

 

Notas bibliográfica e iconográfica

 

O poema foi transcrito de Poesia Espanhola do Após-Guerra, Portugália, Lisboa, s/data.

O poema original foi publicado no segundo livro de poesia de Ángel González, Sin Esperanza Con Convencimiento (1961) e pode ser encontrado na sua Obra Poética (1956-2001), Palabra sobre palabra, Seix Barral, Barcelona, 2004.

A imagem que abre o artigo é um detalhe de Andrómeda libertada por Perseu, pintura a óleo sobre madeira de (1510-1513), pintada por Piero di Cosimo (1461-1522) que pertence à colecção da Galeria Uffizi de Florença.

Alegoricamente a imagem conduz à sobre-humana força temperada da ajuda divina proveniente do Olimpo europeu, que não grego, e aqui personificada em Perseu, de que o governo deu provas ao derrotar o monstro, nas diversas capas que vestiu.

Sarcasmo? Talvez…

…

agradecemos

a trégua convencional do entreacto,

e comprovamos

alegremente que tudo era mentira,

enquanto os músicos afinam os violinos.

…

e pensemos,

quando o drama prosseguir e a dor

fingida

se torne verdadeira em nossos corações,

que nada se pode fazer, que está próximo

o fim que tememos de antemão,

que a aventura acabará, sem dúvida,

como deve acabar, como está escrito,

como é inevitável que suceda.

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Inventário de lugares propicios ao amor – poema de Ángel González (1925-2008)

24 Quarta-feira Ago 2011

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Angél Gonzalez

Com os cenários das descobertas eróticas da adolescência por perto, ocorre-me o poema de Ángel González, Itinerário de lugares propícios ao amor, na certeza de que alguns lugares sonhados são de todo inadequados. Por exemplo fazer amor na praia à beira-mar é tudo menos recomendável, mesmo dispondo de larga toalha. As voltas e reviravoltas da coisa acabam por trazer a areia para onde não deve e pode deitar tudo a perder quando o entusiasmo quer fazer esquecer tudo o resto. Pode ainda suceder um qualquer barco de pesca de beira-costa, andar por perto e ainda que estejamos numa praia deserta, surge súbito do mar para observar os inusitados movimentos entrevistos ao longe, como certa vez me aconteceu.

Há também em todos nós, julgo, ou pelo menos entre os que já experimentaram o prazer sublime de nadar nu no mar, o desejo de cópula marinha. Esqueçam. Ainda que o desejo exista e a erecção se mantenha, a lavagem constante da água do mar põe fim a qualquer lubrificação natural ou artificial tornando a expectativa de prazer em algo inalcansável, a menos que tenhais entrado no mar com considerável fornecimento de manteiga, o que nunca experimentei.

Feita esta pequena digressão deixo-vos com o poema Inventário de lugares propicios ao amor de Ángel González (1925-2008) na tradução de José Bento.

INVENTARIO DE LUGARES PROPÍCIOS AO AMOR

São poucos.

A primavera tem muito prestígio, mas

é melhor o verão.

E também essas fendas que o outono

forma ao interceder com os domingos

em algumas cidades

amarelas já por si como bananas.

O inverno elimina muitos sítios

gonzos de portas voltadas para o norte,

margens de rios,

bancos públicos.

Os contrafortes exteriores

das antigas igrejas

deixam às vezes vãos

utilizáveis, mesmo se cai neve.

Mas desenganemo-nos: as baixas

 temperaturas e os ventos húmidos

dificultam tudo.

As leis, além disso, proíbem

a carícia (com isenções

para determinadas zonas epidérmicas

– sem interesse nenhum –

em crianças, cães e outros animais)

e o “não tocar, perigo de ignomínia”

pode ler-se em milhares de olhares.

Então, para onde fugir?

Por toda a parte olhos vesgos,

córneas torturadas,

pupilas implacáveis,

retinas reticentes,

vigiam, desconfiam , ameaçam.

Resta talvez o recurso de andar só,

de esvaziar a alma de ternura

e enchê-la de tédio e indiferença,

neste tempo hostil, propício ao ódio.



O poema foi publicado na Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea editada por Assírio & Alvim em 1985.

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Cielito Lindo num poema de Ángel González

20 Sábado Ago 2011

Posted by viciodapoesia in Convite à música, Poetas e Poemas

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Angél Gonzalez

De vilegiatura por terras do SE algarvio, as memórias são inevitáveis, e a proximidade de Espanha traz a familiaridade de uma vida com as gentes e a cultura.

Na infância, nestas remotas terras isoladas do pais, onde a radio apenas chegava a espaços e com fraco sinal, as emissoras de Espanha eram omnipresentes e inevitavelmente cresci ouvindo as canções que ali passavam. Estou por tal forma impregnado delas que ouvi-las traz-me de volta o perfume dos tempos encantados.

Os acasos da leitura de poesia, que por estes dias é em castelhano, fizeram-me encontrar um poema de Ángel González (1925-2008), Canción, glosa y cuestiones, onde ecoa uma dessas canções, Cielito Lindo, na ironia saborosa do grande poeta.

Canción, glosa y cuestiones

Ese lugar que tienes,
cielito lindo,
entre las piernas,
ese lugar tan íntimo
y querido
És un lugar común.

Por lo citado y por lo concurrido.

Al fin, nada me importa:
me gusta en cualquier caso.

Pero hay algo que intriga.

Cómo
solar tan diminuto
puede ser compartido
por una poblatión tan numerosa?

Qué estatutos regulan el prodigio?

A canção deu a volta ao mundo na voz de Nat King Cole, mas é outra a versão familiar da minha infância, e essa, é cantada por um trio masculino, Los 3 Paraguaios.

Deixo-vos com ela:

https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/Fabulosos+3+Paraguayos+Lo+Mejor+de+los+Fabulosos+Tres+Paraguayos+04+Cielito+Lindo.mp3

Nota talvez necessária: Cielito lindo é uma forma de tratamento carinhosa para alguém de quem gostamos.

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