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Dúplice e irónico, o poema Prova de Ángel González (1925-2008), traz uma prova da existência de Deus na perfeição do funcionamento físico da sua criatura, O Homem:


Isto é alguma coisa
repito
se se tem
em conta
essa admirável prova da existência de Deus
constituída
pelo perfeito funcionamento dos meus centros nervosos
que transmitem as ordens que o meu cérebro emite
às margens longínquas das minhas extremidades.

 

Depois, a evidência de que esse perfeito funcionamento tanto serve para fazer o bem como para fazer o mal,

Mão coça-me a cabeça!
Mão, aproxima
essa cadeira. Desaperta
o soutien a essa miúda
— e tu, a outra, não fiques quieta.
Apanha
todo o dinheiro, mão:
incendeia, mata.

 

O que lhe permite concluir em dedução à maneira da matemática, com esta fórmula lapidar:

Portanto,
prova-se uma vez mais,
como eu dizia,
a ordem natural e pré-existente,
a formosura harmónica das coisas.

 

De novo, e uma vez mais, sem respostas definitivas, continuamos a busca inacabada da razão porque existimos.

 

 

Prova

De todos os modos, tenho ainda
este papel,
a caneta,
e a mão direita que a aperta,
e o braço que liga ao meu corpo
para que não fique
— tão distante e longínqua —
como um objeto solto e estranho
— cinco dedos movendo-se,
marchando
pelo solo,
tal como um sujo
animal acossado pela vassoura…

Isto é alguma coisa
repito
se se tem
em conta
essa admirável prova da existência de Deus
constituída
pelo perfeito funcionamento dos meus centros nervosos
que transmitem as ordens que o meu cérebro emite
às margens longínquas das minhas extremidades.

Penso:
           a tarde morre,
e minha mão escreve:
                                     a tarde
morre.
           Ergo Deus existe.

Como é fácil agora,
integrar-se num mundo ordenado e perfeito,
quando se dispõe de uma mão tão perfeita e valiosa,
tão matéria de prova,
tão corpo de delito.

Mão coça-me a cabeça!
Mão, aproxima
essa cadeira. Desaperta
o soutien a essa miúda
— e tu, a outra, não fiques quieta.
Apanha
todo o dinheiro, mão:
incendeia, mata.

Portanto,
prova-se uma vez mais,
como eu dizia,
a ordem natural e pré-existente,
a formosura harmónica das coisas.

Tradução de Egito Gonçalves.

O poema original, Prueba, foi publicado no livro Grado Elemental, 1962.
Transcrevo a tradução de Poesia Espanhola do Após-Guerra, Portugália Editora, s/d.

 

 

Abre o artigo a imagem ligeiramente enquadrada de uma pintura de Georg Baselitz (1938), A mão de Deus (Remix) de 2006.