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Um destes dias veio ao meu encontro o poema de Ángel González (1925-2008) que hoje transcrevo, Entreacto, em tradução de Egito Gonçalves (1920-2001).
A campanha eleitoral anima-nos o dia-a-dia televisivo. Nas pausas que o trabalho permite tenho olhado a televisão à hora das notícias. Perante a conversa e os personagens que fazendo pela vida tentam convencer-nos do que é bom para cada um de nós com:
…
Aqueles
ineficazes e tortuosos diálogos
com referências a ontem, a um tempo
ido,
completam, no entanto,
o panorama esfarrapado que ante nós
se depara, e talvez
então expliquem muitas coisas, sejam
a chave que no final justifique
tudo.
…
(fim de citação), invade-me uma melancolia inaudita, afinal resultado dos tantos anos em que os personagens repetem a peça.
Como luva que calça a atmosfera política do Portugal de hoje, é do que talvez alguns também sintam que o poema fala.
Após o fragmento anterior, eis o poema na totalidade da tradução e no original.
Entreacto
Não acaba aqui a história.
Isto é só
uma pequena pausa para que descansemos.
A tensão é tão grande,
a emoção que a trama desprende é tão
intensa,
que todos,
bailarinos e actores, acrobatas
e o distinto público,
agradecemos
a trégua convencional do entreacto,
e comprovamos
alegremente que tudo era mentira,
enquanto os músicos afinam os violinos.
Até agora, vimos
várias cenas rápidas que preludiavam a morte,
conhecemos o rosto de certos personagens
e sabemos
algo que inclusivamente muitos deles ignoram:
o móbil
da traição e o nome
de quem a praticou.
Não ocorreu ainda nada de definitivo
mas
o desespero e os intérpretes
tentam evitar o rigor do destino
pondo demasiado calor nos seus exuberantes
ademanes, demasiado colorido nos seus sorrisos
falsos,
com que — é evidente — dissimulam
a sua covardia, o terror
que dirige
os seus movimentos no cenário.
Aqueles
ineficazes e tortuosos diálogos
com referências a ontem, a um tempo
ido,
completam, no entanto,
o panorama esfarrapado que ante nós
se depara, e talvez
então expliquem muitas coisas, sejam
a chave que no final justifique
tudo.
Não esqueçamos também
as palavras de amor junto ao tanque
o gesto demudado, a violência
com que alguém disse:
“não”
olhando o céu,
e a surpresa que produz
o torvo jardineiro quando anuncia:
“chove, senhores,
chove
ainda”.
Mas talvez seja cedo para conjecturas:
deixemos
que a tramóia se prepare,
que os que hão-de morrer recuperem o alento,
e pensemos,
quando o drama prosseguir e a dor
fingida
se torne verdadeira em nossos corações,
que nada se pode fazer, que está próximo
o fim que tememos de antemão,
que a aventura acabará, sem dúvida,
como deve acabar, como está escrito,
como é inevitável que suceda.
Original em castelhano
Entreacto
No acaba aquí la historia.
Esto es solo
una pequeña pausa para que descansemos.
La tensión es tan grande,
la tensión que desprende la trama es tan
intensa,
que todos,
bailarines y actores, acróbatas
y distinguido público,
agradecemos
la convencional tregua del entreacto,
y comprobamos
alegremente que todo era mentira,
mientras los músicos afinan sus violines.
Hasta ahora hemos visto
várias escenas rápidas que preludiaban muerte,
conocemos el rostro de ciertos personajes
y sabemos
algo que incluso muchos de ellos ignoran:
el móvil
de la traición y el nombre
de quién la hizo.
Nada definitivo ocurrió todavía
pero
la desesperación está nítidamente
dibujada, y los intérpretes
intentan evitar el rigor del destino
poniendo
demasiado calor en sus exuberantes
ademanes, demasiado carmín en sus sonrisas
falsas,
con lo que -es vidente- disimulan
su cobardía, el terror
que dirige
sus movimientos en el escenario.
Aquellos
ineficaces y tortuosos diálogos
refiriéndose a ayer, a un tiempo
ido,
completan. sin embargo,
el panorama roto que tenemos
ante nosotros, y acaso
expliquen luego muchas cosas, sean
la clave que al final lo justifique
todo.
No olvidemos tampoco
las palabras de amor junto al estanque,
el gesto demudado, la violencia
con que alguien dijo:
«no»,
mirando al cielo,
y la sorpresa que produce
el torvo jardinero cuando anuncia:
«Llueve, señores,
llueve
todavía.»
Pero tal vez sea pronto para hacer conjeturas:
dejemos
que la tramoya se prepare,
que los que han de morir recuperen su aliento,
y pensemos,
cuando el drama prosiga y el dolor
fingido
se vuelva verdadero en nuestros corazones,
que nada puede hacerse, que está próximo
el final que tenemos de antemano,
que la aventura acabará, sin duda,
como debe acabar, como está escrito,
como es inevitable que suceda.
Notas bibliográfica e iconográfica
O poema foi transcrito de Poesia Espanhola do Após-Guerra, Portugália, Lisboa, s/data.
O poema original foi publicado no segundo livro de poesia de Ángel González, Sin Esperanza Con Convencimiento (1961) e pode ser encontrado na sua Obra Poética (1956-2001), Palabra sobre palabra, Seix Barral, Barcelona, 2004.
A imagem que abre o artigo é um detalhe de Andrómeda libertada por Perseu, pintura a óleo sobre madeira de (1510-1513), pintada por Piero di Cosimo (1461-1522) que pertence à colecção da Galeria Uffizi de Florença.
Alegoricamente a imagem conduz à sobre-humana força temperada da ajuda divina proveniente do Olimpo europeu, que não grego, e aqui personificada em Perseu, de que o governo deu provas ao derrotar o monstro, nas diversas capas que vestiu.
Sarcasmo? Talvez…
…
agradecemos
a trégua convencional do entreacto,
e comprovamos
alegremente que tudo era mentira,
enquanto os músicos afinam os violinos.
…
e pensemos,
quando o drama prosseguir e a dor
fingida
se torne verdadeira em nossos corações,
que nada se pode fazer, que está próximo
o fim que tememos de antemão,
que a aventura acabará, sem dúvida,
como deve acabar, como está escrito,
como é inevitável que suceda.